7.11.14

Estabilidade

Hoje é meu último dia de Tribunal. O fim de um ciclo que começou lá no infinitamente distante ano de 2003, meio de surpresa, no embalo de uma grande virada na minha vida que foi o diagnóstico e subsequente tratamento do meu TDAH. Aconteceu tudo meio de surpresa, de improviso. No último dia de inscrições, uma amiga me perguntou se eu iria prestar, porque era para a área de informática e a inscrição estava baratinha. Naquela época, no início da minha Fase Ritalina, eu estava fascinado com minha própria capacidade de me focar em coisas que antes eram praticamente impenetráveis para mim de tão maçantes, então em um mês entre a inscrição e a prova eu li duas apostilas dessas de banca e, para minha surpresa (e para agravar minha sensação de que eu tinha despertado um tipo de superpoder que me permitia fazer qualquer coisa) passei em primeiro lugar, e fiquei com a única vaga que estava em disputa. Mesmo não tendo nunca sido minha ambição, ou mesmo pretensão, terminei aquele ano - que havia começado no fundo do poço, abandonando a UFRJ e entregue à certeza de que eu era um vagabundo sem rumo incorrigível - como funcionário público do judiciário federal.

Anteontem, dei a canetada no formulário de pedido de exoneração. Não foi uma atitude de impulso, mas também não foi resultado de um cuidadoso planejamento ao longo dos anos para migrar do serviço público para algo mais ambicioso fora dele (coisa que eu tinha em mente nos primeiros anos, mas que foi sendo postergado até ser, finalmente, esquecido). Foi apenas como as coisas aconteceram. Diversos acontecimentos ao longo do último ano foram alterando cada vez mais as minhas perspectivas de futuro até que, no início do segundo semestre, a permanência no Rio de Janeiro ficou insustentável financeiramente, e tomamos a decisão de irmos para São Paulo, aonde as condições são suficientemente melhores para que a nossa subsistência seja garantida. Eu tive a chance de fazer uma permuta com um funcionário do TRT de São Paulo, mas apareceu uma proposta mais interessante, tanto financeira quanto profissionalmente, na iniciativa privada. Então eu fiz a opção, e foi uma opção bastante natural para mim.

O que eu não esperava, no entanto, era a reação das pessoas. Não houve um único parente, amigo ou colega que não tenha arregalado os olhos ao descobrir que eu estava me exonerando daqui. Eu já contava a novidade esperando os olhos dos interlocutores se esbugalharem, e eventualmente a boca entreabrir incredulamente. Muitos me parabenizaram pela "coragem," alguns me perguntavam um "mas por QUÊ" em tom confuso, e houve mesmo quem tenha tentado me dissuadir da idéia - em especial meu chefe, o que é até compreensível, mas nem de longe ele foi o único. Alguns me suplicaram para repensar, para tentar uma licença sem vencimentos - o que acabei fazendo, a contragosto, mas a probabilidade dela ser dada em tempo hábil era zero, então não insisti. E, afinal, não era o que eu queria. Eu queria sair, e foi o que eu fiz. E por um momento, quando assinava a papelada, me senti cometendo um crime, ou desrespeitando as crenças e os valores alheios, tamanha a resistência que a idéia teve entre todos os que me cercavam. Isso me deixou, de certa forma, triste. Mas foi só quando um colega daqui, com quem eu troco uma ou outra palavra, aproveitou que estávamos descendo juntos no elevador para - gaguejando, acreditem - me parabenizar pela coragem de ser "um dos raríssimos casos na história do Tribunal a pedir exoneração voluntariamente," que eu percebi que eu não tenho por que me sentir mal. Não estou sendo corajoso, irresponsável nem temerário. Os outros é que não entendem nada da vida.

Não quero que pensem que eu não entendo o que significa ter um emprego estável, ou que não dou valor aos benefícios que minha carreira oferece. Eu sei muito bem o que significa estar aqui, e o que significa estar trabalhando pela CLT para a iniciativa privada. Sei de muita gente próxima - bem próxima, inclusive - que vive perrengues terríveis no mercado de trabalho atualmente e que daria tudo para ter a estabilidade que eu estou, no conceito leigo de alguns, jogando fora. Mas a verdade é que, em 11 anos de Tribunal, eu não senti essa tão romantizada estabilidade que todo mundo associa ao funcionário público. Claro, eu tinha garantias que a maioria não tem - a de que eu não seria um belo dia chamado na sala do chefe para ouvir que a barca do downsizing estava passando e me levando, por exemplo. Mas no quadro geral - na vida, nas finanças, na saúde - não tive nenhuma estabilidade não. E nem poderia ter, porque estabilidade é uma utopia, um construto, um pote de ouro ao fim do hipotético arco-íris da vida diária. É uma mentira colorida feita para trazer perspectiva de conforto, muito como a fé em alguma religião da vida.

Aos 33 anos, eu hoje tenho o pleno conceito da diferença entre conhecimento e sabedoria. É fácil adquirir conhecimento, mas a sabedoria depende diretamente da experiência de vida. Quando aquele colega falou comigo que "mas de repente você também terá uma estabilidade lá na empresa, por causa das circunstâncias, né?" eu me senti conversando com uma das personagens do Mito da Caverna, de Platão, que tentava compreender o que eu iria fazer do lado de fora onde não haviam sombras perfeitamente definidas. E ele deve ser uns 20 anos mais velho do que eu, mas naquele momento, toda a falta de sabedoria dele transbordou aos olhos. E eu me senti aliviado, porque até o momento, toda a incredulidade e toda a negatividade dos outros em relação a minha decisão - mesmo dos amigos que me apoiaram, mas nunca sem deixar escapar um "tem certeza?" que demonstrasse que eles, também, não concordavam comigo em algum nível - tinha me deixado numa situação que só poderia ser explicada de duas formas: ou eu estava completamente maluco, ou todo mundo ao meu redor estava completamente desinformado. Naquele momento, tive certeza que era a segunda opção.

E não culpo ninguém por isso, realmente. Como eu disse, conhecimento é uma coisa, sabedoria é outra. Uma pessoa pode aprender muito cedo na vida que a natureza é uma coisa dinâmica, mas enquanto houver qualquer ilusão de segurança à qual ela possa se apegar, mesmo que subconscientemente, essa informação será apenas conhecimento. É só após muitos anos vivenciando as inconstâncias da vida, só depois que o tempo demole um a um todos os supostos portos seguros de uma pessoa, que o conhecimento é absorvido pela alma e vira sabedoria. Por isso idosos são tão sábios, mesmo quando não tiveram muito acesso a informação e conhecimento na vida. Porque eles detém essa vivência, que nem o mais estudioso dos jovens pode ter.

Eu tenho uma vantagem nesse aspecto. A minha vida é mais inconstante do que a média. A instabilidade não está só nos movimentos sociais, econômicos e geopolíticos ao meu redor, está dentro da minha cabeça. A vida de um TDAH é uma eterna instabilidade. É uma torrente constante de frustrações, pancadas, pequenas derrotas. Então, de certa forma, não estou abandonando estabilidade nenhuma. Pelo contrário, esse último ano foi um dos mais instáveis e malucos de minha curta-mas-não-tanto vida, e eu tive que lidar com mais momentos de chão sumindo de baixo dos pés em 11 meses do que muita gente lida a vida inteira. Estar ou não no serviço público não vai me trazer esse falso conforto de uma suposta estabilidade, porque aqui a guerra é 24/7.

Por outro lado, talvez isso seja bom. Talvez a instabilidade, a incerteza, me faça bem. Minha produtividade aqui no TRT, que era tão elogiada nos primeiros anos que passei aqui, caiu a quase zero nos últimos. Em parte porque eu me desmotivei com a falta de desafios e o ambiente tedioso, e em parte porque outras partes da minha vida solicitaram minha atenção. Antes de ser diagnosticado com TDAH, eu não era um vegetal. Eu tive um bom aproveitamento no primeiro e segundo graus escolares, eu cheguei a cursar Piano na EMVL, eu tinha minhas conquistas aqui e ali... mas eu não tinha controle sobre elas. Eu me dedicava àquilo que ativava meu foco, e um dos principais ativadores era a pressão externa. Enquanto eu morava com meus pais, a dinâmica entre eu e eles gerava essa pressão, essa cobrança, que era suficiente para me levar. Foi quando saí de casa para morar sozinho que a coisa degringolou. Estar numa situação confortável, sem cobranças imediatas, acabou com minha produtividade. Quando comecei o tratamento com a Ritalina, o remédio substituiu essa pressão e eu pude enfim direcionar meu potencial para onde eu bem entendia.

Mas eu não contava com o outro lado da moeda: depois da chegada dos filhos, a dinâmica de pressão voltou a estar presente dentro da minha casa, e sequestrou toda minha energia. Eu não precisava mais de estimulantes, eu precisava de um DESestimulante, algo que conseguisse quebrar essa atração gravitacional irresistível que a pressão dos imprevistos domésticos diários exercia na minha atenção. E por anos eu tentei de tudo, troquei inúmeras vezes de remédios tarja preta, cheguei a estar tomando 10 comprimidos por dia antes dos 30 anos, mas sem sucesso. As áreas da minha vida que não me exerciam pressão (meu emprego estável, minha faculdade quase-terminada que só dependia do meu esforço em fazer o projeto final) simplesmente não tinham como competir pelo meu tempo. Isso fez minha produtividade se deteriorar completamente e me botou em maus lençóis aqui. Claro, ainda tinha o emprego, o salário e a estabilidade, mas não era mais uma peça importante para o Tribunal já há algum tempo.

Então, não é estranho que eu esteja partindo para uma empreitada arriscada. Não tem por que perder mais tempo, dinheiro e saúde procurando um coquetel químico que emule uma solução que está na minha cara: eu preciso da instabilidade, da pressão, para voltar a ser feliz. Claro que existe o outro lado da moeda - apesar de me fazer focar, a instabilidade também me exaure. Mas mesmo trocar um problema por outro é um bom negócio, porque para isso existem outras soluções que podem funcionar melhor do que o que eu tenho hoje em dia. E, se bem me conheço, uma vez que a minha produtividade profissional volte a ser estimulada, o céu é o limite.

Então relaxem, queridos amigos. Não estou louco, nem inconsequente. Estou, na verdade, dando um passo muito bem calculado e cientificamente embasado na direção de uma melhora de saúde, de humor e de vida. Só parece meio doido para vocês porque vocês ainda são apegados a noções abstratas de segurança e conforto, mas eu já descobri que segurança e conforto são contos de fadas, e que a vida é essa coisa fluida, dinâmica, e instável por natureza (tanto que a única coisa definitva que existe é justamente a morte). Não me entendam mal, não critico ninguém por valorizar a calmaria. Mas a vida vem em ondas, já diria o profeta, e eu prefiro surfar a me agarrar a uma bóia.

E vamos lá rumo à vida nova!

11.2.14

CARTA ÀQUELES QUE CONCORDAM E SE SENTEM REPRESENTADOS PELOS IDEAIS DE RACHEL SHEHERAZADE

Olá. Não nos conhecemos, mas gostaria de me apresentar. Meu nome é Rafael, tenho 33 anos, casado, pai de 2 filhos, funcionário público federal. Pago meus impostos em dia. Não sou nem nunca fui filiado a nenhum partido político, mas me considero um esquerdista (pelo menos na concepção de 20 anos atrás, não sei o que se entende por esquerdista hoje.) Nas 3 eleições presidenciais que vivi em condições de votar, votei em Lula e Dilma. Não sei em quem vou votar esse ano porque o governo atual, a despeito do que fez de positivo, se distanciou demais da minha visão política para continuar recebendo meu subsídio simbólico. Digo "simbólico" porque eu, na minha combinação incomum de formação filosófica/condição socioeconômica, jamais farei parte de um grupo homogêneo grande o bastante para ter peso em eleições. Sou a eterna minoria, e já me acostumei a isso. Mas ainda assim, cumpro meus deveres cívicos.

Como vocês já devem ter deduzido, eu sou radicalmente contra o discurso do "bandido bom é bandido morto," sou defensor ferrenho dos Direitos Humanos, não acredito em violência como resposta para nada e muito menos na existência da instituição "cidadão de bem."

Ao contrário do que vocês devem ter imaginado, não sou Marxista, Stalinista, comunista, socialista, nem pratico qualquer outro "ismo" político. Não sou contra a propriedade privada nem a favor da anarquia. Não sou Black Bloc, não sou do Anonymous, não vandalizo símbolos do capitalismo e DEFINITIVAMENTE não atiro rojões contra policiais ou jornalistas. Na verdade, abomino essas coisas tanto quanto vocês.

Por que estou escrevendo para vocês, membros da sociedade que a esquerda ativista tão facilmente joga na vala comum dos rótulos de "coxinha" e "reaça," se discordo de tudo o que vocês pensam?

Porque quero ser amigo de vocês.

É meu entendimento que estamos num momento delicadíssimo no país, e ninguém está fazendo nada para conciliar as partes. Tudo o que eu vejo na mídia, nas redes sociais, no papo de elevador, é gente jogando pra própria platéia. O debate político no país ficou em coma por muitos anos, mas agora que voltou parece que todo mundo só está interessado em gritar, rosnar, enfiar seus ideais goela abaixo dos discordantes, ou pior: nem faz questão de explicar seus pontos de vista, apenas ironiza e hostiliza as opiniões contrárias e trata quem as têm como um inimigo. A ficha caiu assistindo a um vídeo gravado no domingo, onde jornalistas tentavam entrevistar três manifestantes que chegavam à delegacia para se inteirar do caso do cinegrafista Santiago Andrade. No vídeo fica claro que os dois grupos já começam a interagir na ofensiva, trocam farpas desnecessárias, e no ponto culminante do vídeo, um dos ativistas diz a um cinegrafista que "espera que ele seja o próximo" (a levar um rojão na cara), ao que o cinegrafista simplesmente golpeia a cabeça do menino com a câmera. É um show de horrores, de bile, de intolerância, e é uma situação absurda que não favorece ninguém. Os dois estavam errados, e os dois estavam calçados em justificativas emocionais genuínas para suas reações. Mas justificativas emocionais não valem de nada em sociedade. Somos seres racionais, e estamos deixando de nos comportar de acordo por causa de uma crescente histeria coletiva.

Então estou tomando a iniciativa de sair da comodidade de apenas repercutir idéias que corroboram com as minhas para meus amigos (que felizmente pensam como eu em questões fundamentais, ou dificilmente seriam meus amigos) e de expôr ao ridículo os pensamentos contrários - sabendo que assim, quem os tem também se sente ridicularizado e atingido. Estou estendendo a mão e oferecendo uma trégua, e tudo o que peço é que leiam desarmados - e que, sobretudo, não se sintam paternalizados. E nem se sintam corrigidos, porque eu não acho que vocês estejam errados. Dentro do universo de argumentos que compõem a filosofia do olho-por-olho, dente-por-dente, vocês estão certos.

Mas estar certo não significa estar correto. Parece estranho, mas deveria ser óbvio. Ninguém considera a própria opinião errada, e mesmo assim existem opiniões divergentes no planeta. Então, o que diferencia o certo do correto? Pra começar, o correto é um estado utópico e inalcançável, mas nossas certezas podem estar mais ou menos próximas do correto. E, na maioria das vezes, isso depende diretamente da quantidade de informações sobre um fato que cada um possui. Muitas pessoas que têm opiniões diferentes sobre o mesmo assunto, na verdade, pensam da mesma forma e têm os mesmos valores. O que muda é a quantidade de informação em que a opinião se baseia. Então, você pode estar certíssimo em seu ideal baseado em 3 ou 4 fatos que servem para alimentar sua opinião, porém outros 5 fatos que você desconhece mudariam a equação para um resultado radicalmente diferente.

Então eu venho aqui tentar explicar, bem didaticamente, os motivos que me levam a acreditar que vocês têm uma visão muito incorreta dos problemas que povoam a nossa realidade cotidiana e suas possíveis soluções.

Vou começar dizendo que é natural e normal pensar assim. Na verdade, é instintivo. A revolta, a agressividade, a reatividade são elementos fundamentais do ser humano e de quase todos os seres vivos. Sempre que nos deparamos com a violência, a agressividade alheia, temos o mesmo instinto de nossos ancestrais: defender nosso território e nossas vidas. Na natureza, a única forma de fazer isso é o conflito, e portanto somos moldados e chaveados para querer o conflito quando nos sentimos ameaçados. Com essa estrutura psicológica pura, e munido apenas das informações que se forçam às nossas percepções (é impossível ignorar a violência quando todo dia ela está estampada nas nossas caras, isso quando não aparece pessoalmente para nos assombrar), não existe outra resposta que não a da defesa, na necessidade de extirpar a força agressora. Nesse estado de coisas, isso é mais do que o certo, é o natural.

Mas nós não somos apenas animais. Nós somos racionais. Nós temos linguagem, organização, raciocínio. Todas essas dádivas nos separaram dos demais animais e nos deram a chance de escolhermos como nos organizarmos socialmente de forma otimizada para a espécie (ao contrário de, por exemplo, abelhas e formigas, cuja organização social, apesar de sofisticada, é aquela que está impressa no DNA e só). Em especial, a capacidade de transmitir nossas experiências através das gerações nos faz com que sejamos um grande organismo coletivo cujo tamanho, complexidade e capacidade vem crescendo continuamente por milhares de anos, em ritmo acelerado. Através desse tempo, enfrentamos muitas dificuldades, e a principal é justamente a eterna presença dos instintos primitivos que volta e meia reclamam alguns anos de progresso da nossa espécie.

Por estarem conosco desde os mais distantes antepassados, esses instintos não são novidade para ninguém. Os mais antigos pensadores registrados na História já as conheciam, já as viam como obstáculos ao refinamento da espécie, e já propunham mecanismos que minimizassem o impacto desses instintos na organização social, para que todos prosperássemos juntos.

Mas se fosse fácil negar o instinto, o problema já estaria resolvido desde Aristóteles. Não é, e não está. Por mais rápida que seja a evolução tecnológica da humanidade, a evolução biológica é um processo infinitamente mais lento. Por isso a história é recheada de exemplos de comportamentos primitivos - instintos, hormônios, mentalidade de massa, etc. - causando grandes danos e dolorosas involuções na organização social. É como se alguém tentasse montar um castelo de cartas durante uma crise incurável de soluços. É um ciclo eterno de construção, demolição, reconstrução com bases mais sólidas, demolição, reconstrução com bases ainda mais sólidas... e, claro, de tentar se prevenir contra o próximo soluço evolutivo. As causas são as mesmas desde sempre, então por que somos incapazes de evitá-las?

Porque nossa memória é curta, e porque o trauma de um desabamento vai diminuindo conforme ele vai ficando para trás. O trauma é um dispositivo importante no ser humano, porque ele age diretamente no instinto, inibindo a nossa reincidência em erros que têm consequências catastróficas. Mas quando ele passa, mesmo que o registro do ocorrido persista, ele não tem mais efeito fisiológico, apenas racional. E aí, historicamente, é uma questão de tempo até o homem primitivo sabotar o homem racional.

A única forma de combater esse ciclo é tentar racionalizar. E socialmente falando, isso é feito repassando a história, educando a nossa prole a bloquear esses instintos autodestrutivos desde pequenos, para que eles não se somem ao movimento retrógrado que carregamos como uma âncora.

Por que eu digo isso tudo? Porque estamos vivendo um momento que se parece perigosamente com o início de uma queda-livre social que vai destruir muita coisa que construímos. Porque opiniões baseadas unicamente em uma resposta visceral ao sentimento de impotência, opressão e exclusão que sentimos estão ganhando força, ecoando cada vez mais alto. E todas - TODAS - as vezes que isso aconteceu na história, e foram muitas, todo mundo perdeu. A idade média, as grandes guerras, a ditadura militar no Brasil, todos esses foram momentos da história em que viramos mais animais e menos humanos, e a sociedade organizada involuiu como consequência. É sempre por causa desse sentimento, seja ele artificialmente alimentado ou não (e acreditem, quase sempre é), que nós perdemos liberdades, direitos, vidas. Não porque pessoas erradas tiveram vontades erradas, mas porque pessoas que não viveram o trauma na pele e nem têm memória do passado agiram sobre seus instintos primitivos, com paixão e certeza.

A mesma paixão e certeza com que vocês agora aplaudem o que a Rachel Sheherazade diz. Porque é libertador, é catártico, libertar a fera. É um alívio descomunal parar de se esforçar para afogar a agressividade, a animosidade, aquilo tudo que mora dentro das nossas veias, em nome de uma sociedade que não dá em troca aquilo que nós merecemos pelo esforço.

Inclusive, é exatamente isso que acontece na mente e no fígado dos assaltantes, homicidas, criminosos, desses bandidos todos. Só que o ponto de ebulição deles foi antes, e com algum outro catalisador que era menos loirinho, menos articulado, e menos visível nacionalmente do que a jornalista Rachel Sheherazade. E a dívida da sociedade para com eles é bem maior.

Se algum de vocês chegou até aqui, talvez tenham torcido o nariz agora e pensado "Ah, pronto, lá vai ele defender bandido." Não vou defender bandido - embora esse termo seja muito infeliz, já que grandes personalidades históricas e até religiosas que nós temos como parágonos da justiça e virtude tenham sido bandidos, às vezes condenados e presos a postes (ou cruzes) para esperar a morte. Estou apenas dizendo que somos todos iguais. Todos nós, do meu lado, do seu, do lado dos "vagabundos," todos temos a mesma responsabilidade de conter o instinto primitivo para podermos usufruir da vida em sociedade - que, pra piorar, nem é facultativa. E sem o trauma para nos dar uma injeção de adrenalina e nos avisar que estamos todos caminhando para um retrocesso abismal, é fácil sentir que não estamos fazendo um bom negócio.

Se vocês que estão inteiramente inseridos e beneficiados pela sociedade (e antes que alguém ouse pensar que não precisa ou não se encaixa na sociedade vigente, responda se você construiu sua própria casa, caçou ou plantou sua própria comida, talhou seus próprios utensílios e nunca, JAMAIS, utilizou moeda corrente de qualquer sistema financeiro existente no mundo. Se a resposta não foi sim para todas as perguntas, você está inseridíssimo na sociedade, inclusive na parte privilegiada) se sentem assim, imaginem como seria viver à margem da mesma. A mesma responsabilidade de ser racional e correto, em prol de uma sociedade que largamente te ignora, e que constantemente esfrega na sua cara que tem gente se dando muito melhor do que você sem fazer um milésimo do esforço. Quantos de vocês hesitariam em mandar os outros para o inferno e defender o seu?

A julgar pela atitude que transpira nas declarações de vocês, a resposta é zero.

Então compreendam que ser contra esse discurso não é defender "bandido" em prol de "cidadão de bem," é meramente ter uma visão maior das coisas e entender que vocês e os bandidos estão no mesmo barco, do mesmo lado, e tendo a mesma reação diante das adversidades. Estão sendo igualmente humanos, demasiadamente humanos.

Só que nós aqui desse lado (a maioria, porque tem muita gente que defende ideais progressistas mas reage da mesmíssima forma que os "reaças," inclusive foi o que mais rolou nos protestos de rua, para meu profundo desapontamento. Totalitarismo é totalitarismo independente da bandeira que se empunha - ou da falta de bandeira que se impõe a outrem) também temos um olho na história, reconhecemos os sinais sociais de um colapso social despontando no horizonte, e tentamos evitá-lo a todo custo. Porque se atualmente está ruim, a alternativa é bem pior. Sempre é.

Vocês reclamam que estamos sendo patrulhadores, censores, que estamos cerceando seus direitos de autodefesa e de proteção do seu status e estilo de vida, mas a verdade é que nós não lutamos contra nenhum direito, apenas a favor do direito de todos. O único "direito" que nós negamos a vocês é o "direito" de legislar sobre a vida alheia, e uso aspas aqui porque isso não é direito de ninguém em nenhuma escola filosófica do planeta. O direito de cada um acaba quando começa o do outro. Parece batido, porque é. É uma verdade universal e fundamental, é o pilar da sociedade da nossa espécie, e sem ela, viramos animais.

A sociedade atual é violenta porque é desigual. Porque não há igualdade de direitos, não há igualdade de oportunidades, e não há igualdade de tratamento. O ônus do direito à propriedade privada é estar sempre à mercê dos efeitos do desequilíbrio. Quanto mais a balança do privilégio pesa para um grupo de membros da sociedade, menos o outro grupo se interessa em se manter incluído. Defender o seu privilégio é defender um estado de perpétua desigualdade, que por sua vez gera uma violência sem fim. Não existe justificativa moral, ética ou estrutural para a desigualdade. A idéia de que existe um "bandido" malvadão e uma "gente de bem" que faz tudo de acordo com as regras e vive confortavelmente porque foi um ser humano exemplar é uma falácia grosseira, mas é cômoda porque assim a consciência de quem está mais preocupado com seu individual do que com o coletivo não pesa quando algum desfavorecido pede trocado no sinal, ou leva seu relógio de marca.

O problema é que, se deixada sem supervisão, ela vai nos levar, a todos, de volta à pré-história.

É isso. Essa é a essência do que nos coloca de lados opostos nessa briga-de-torcida que virou a política no Brasil. Não somos inimigos nem queremos tirar o que é de vocês por direito. Só pedimos que entendam que, no fim das contas, a sua propriedade é que fomenta a violência que tenta tirá-la de você. E que responder isso com mais violência pode parecer certo nas suas glândulas, mas só vai causar mais e mais dano, até que ninguém tenha mais nada.

Por favor, considerem com carinho.

Abs,
Rafael