22.2.12

Epifânia acidental


31 anos nesse mundo, aparentemente, ainda não foram suficientes para aprender a driblar alguns caprichos do meu organismo. Não, não me refiro a qualquer tipo de malfuncionamento intestinal, relaxem. Falo da minha espécie pessoal e bastante peculiar de insônia. O carnaval desse ano coincidiu com o fim das minhas férias e também o fim de uma era aqui em casa, já que a partir da quinta-feira os meninos começam a freqüentar a escolinha, e a preparação espiritual e química (e lícita, antes que alguém pergunte) para essa mudança iminente fez com que eu dormisse muito pouco nos últimos 3 dias, coisa de 7 horas ao todo (um sono de 3h e outro de 4) entrecortando outras 65 acordado. Hoje, véspera da quarta-feira de cinzas, a idéia era estar tão moído que adormeceria à meia-noite e ajustaria pois os horários.

Heh. Claro que, a despeito do total comprometimento com o plano, de ter deitado na hora programada, no quarto escuro e silencioso, de ter confirmado a existência do sono (diversas viagens de ônibus ao longo da adolescência e vida adulta me levaram a desenvolver uma forma de perceber se estava ou não a ponto de adormecer, mesmo quando não havia manifestação física – bocejos, olhos pesados - de sono. Basicamente, eu fecho os olhos e conto quantas imagens aleatórias surgem na minha cabeça, e com que freqüência. Quanto mais nítida e menos coerente a minha torrente de pensamentos estiver, mais perto de dormir eu estou. Isso era crucial para decidir a hora de interromper a leitura ou guardar o discman antes de capotar e sem ter que ficar entediado por muito tempo até finalmente embarcar de vez), o planejamento foi um fracasso retumbante. Cheguei a sentir o relaxamento muscular que precede o apagar da consciência, mas, olhai e regozijai-vos, o sono me evadiu completamente de uma hora pra outra (provavelmente com uma gargalhada maligna) e cá estou eu.

Na vã tentativa de implorar pela volta desse sono que me deixa só, liguei a caixinha de som de cabeceira, selecionei alguns discos só de piano, boa parte dos quais são meus chama-sono desde aquela época das viagens de 17h num Itapemirim sacolejante, e fechei os olhos. Resultado? A insônia agora havia virado uma súbita inspiração para escrever. Bom trabalho, cérebro!

E é por isso que estou aqui, com o notebook apoiado na barriga, passando calor, e escrevendo a atualização trienal do blog para falar por parágrafos sem fim sobre... ouvir música num quarto escuro.

Eu sempre tive uma relação especial com as artes, em especial com música. Pode-se argumentar que a música, por suas características, é uma forma de arte que evoca reconhecimento independente da vontade do interlocutor (e acreditem quando digo que há uns bons anos existe um rascunho de texto sobre o assunto circulando pelos meus axônios só esperando uma luz verde neuronal para ser devidamente produzido) , mas não seria correto afirmar que todo mundo tem o mesmo envolvimento com música. A música é a linguagem universal, mas cada um tem seu próprio nível de compreensão de discurso. Da mesma forma que duas pessoas que sabem perfeitamente falar português podem entender ou não entender o mesmo texto, digamos, um livro do Stephen Hawking – duas pessoas que “falam” música (e para tanto basta ter alma) podem extrair da mesma harmonia um intrincado enredo ou apenas algumas sílabas monótonas. Poderia ir bem mais longe nessa linha de argumentação, e pretendo, mas em outro texto. O foco de hoje é outro, e só evoquei essa introdução para explicar que não estou sendo pedante ou redundante ao estabelecer minha relação com a música como algo extra-ordinário.

Como de praxe na minha vida atualmente, resolvi analisar essa reflexão errática que brotou na minha cabeça quando eu deveria estar roncando e lapidá-la em alguma lição que eu possa passar para meus filhos. E sempre que eu me proponho a fazer isso eu acabo embarcando numa das minhas boas (?) e velhas viagens de autoanálise, dignas dos primeiros anos desse blog, só que agora com uma causa nobre e um tanto a mais de objetividade (ou não, vejam quantas linhas já escrevi e ainda nem terminei o abstrato). E a primeira coisa que eu notei é que essa situação, de estar no escuro, ouvindo uma música de olhos fechados, me transporta imediatamente a vários momentos da minha infância e juventude em que eu fazia exatamente isso. Em vários pontos da vida, em várias situações, em vários estados evolutivos, essa atividade esteve presente, e eu nunca tinha pensado sobre isso.

Também fui perceber que todas as memórias dessa situação, TODAS, são boas lembranças. Mesmo quando, na hora, eu estava mal (e não foram poucas as vezes em que eu estava, de fato, péssimo), a lembrança é acolhedora. E outra coisa que me espantou foi constatar que, todas as vezes que eu fiz isso, eu atingia o ápice da minha introspecção. Nas lembranças, sempre estou total e verdadeiramente sozinho. E, francamente, eu nunca fui um grande fã de ficar sozinho. Sempre soube da importância da auto-suficiência, sempre prezei a liberdade acima de qualquer coisa, mas a verdade é que não via nenhum apelo no isolamento ou na solidão. Ou achava que não via. Em retrospecto, alguns dos momentos mais marcantes e mais saudosos da minha criação era momentos de absoluta e voluntária individualidade.

E de repente eu estava tentando entender por que eu tinha tido uma memória ativada pela simples (e, na minha cabeça, corriqueira) atitude de botar uma música para tocar enquanto tentava limpar a mente, e quando exatamente isso passou a ser tão raro na minha vida que a mais recente lembrança trazida de volta por aquela caixinha de som era de muitos anos atrás. E acho que sei a resposta.

Eu fui um adolescente muito tímido, e como é basicamente na adolescência que temos nossa primeira revisão de identidade (que é, para todos os efeitos, a única aos olhos do próprio adolescente), timidez virou uma das minhas características definidoras por muito tempo, o que hoje em dia eu sei que era uma besteira sem tamanho, porque até meus 10, 11 anos eu era um moleque espivetado cheio de amigos e absolutamente amava qualquer tipo de atenção. Pois bem, a adolescência passou, a timidez também “passou” (graças às aulas de teatro, pensava eu) e ficou por isso mesmo, eu era agora um ex-tímido convertido em ser social através de prática e treino. Mas minhas atividades intimistas – passar horas mergulhado em livros, jogando RPGs de videogame com 2 mil horas de enredo, ou no escuro ouvindo Beethoven e John Williams – eram também parte da minha identidade e sempre seriam.

E, no entanto, faz tempo que não consigo parar para ler mais do que 2 páginas de qualquer livro, não jogo RPG e provavelmente nem falo mais sobre há mais de 8 anos e ouvir música pra mim virou atividade exclusiva de deslocamentos de carro, sempre como pano de fundo para o trânsito. O que diabos aconteceu? Porque também não é como se não tivesse NENHUM tempo sobrando na vida pra um pouco de lazer, é só que de alguma forma eu sempre acabo optando por...

Oh-oh.

Acontece que lá por 1996 eu ganhei um computador do meu pai, que na época morava no Maranhão (e eu em Santa Catarina) e com quem eu estava perigosamente perto de perder completamente o contato. A solução que ele encontrou foi financiar em trocentas vezes um par de IBM Aptivas para que nós driblássemos os custos proibitivos de interurbano com a tal da Internet. E, como bônus, eu ainda tinha acesso a uma fonte virtualmente infinita de páginas da World Wide Web (que devia caber inteira no meu atual HD de 1 Terabyte). Era o paraíso de um adolescente introspectivo que adorava ler. Textos, textos everywhere! Como naquela época se navegava com incríveis modems 2.400bps (isso são BITS POR SEGUNDO, crianças. Sua banda larga atualmente, se vc for MUITO mão de vaca, opera no mínimo a 524.288bps e você ainda xinga porque leva 15 minutos pra carregar a home do UOL) que ocupavam a única linha telefônica da casa (a única mesmo, pq ninguém tinha celular) e cobravam 10 cenavos a cada 4 minutos a título de pulso, exceto entre 0h e 6h, entrar na internet durante o dia era fora de questão. E eu não podia ficar acordado depois da meia-noite pra acessar porque estudava de manhã, então eu desenvolvi o hábito de levantar 1h e meia antes do horário de me arrumar pro colégio, às CINCO E MEIA da matina, só para surfar a web. Em 1996, isso provavelmente era justificativa legal válida para minha internação, mas eu não estava nem aí, passava horas no Webcrawler (e, depois, no AltaVista; Google é coisa de piá de prédio criado a leite com pêra) caçando páginas legais para ler. A internet era tão pequena naquela época que o Yahoo! tinha a opção de listar as páginas por assunto. Não é piada.

Enfim, tudo estava se encaminhando perfeitamente, até que eu resolvi me inscrever numa lista de e-mail (isso foi antes de inventarem fóruns em PHP, e provavelmente antes de inventarem o PHP) sobre RPG, que era um grande interesse meu na época, mas que era um hobby pouco difundido e especialmente obscuro numa cidade como Florianópolis. Minha idéia era apenas buscar gente pra trocar figurinhas sobre aquele assunto em específico, mas a lista era bem mais movimentada do que eu esperava, e era muito interativa. E quase todos os assinantes se conheciam pessoalmente e tinham várias histórias para contar, muitas nem relacionadas com RPG. E um dia alguém me avisou que essa galera estava se comunicando em tempo real através do IRC, e eu resolvi ver qual era, e daí foi ladeira abaixo.

Essa época da minha vida foi a que eu considerei, por muito tempo, o desabrochar da minha socialidade. Mas na verdade era só um reencontro com minha natureza social que há anos estava reprimida. Em um ano eu já havia me decidido a sair de Floripa e ir morar no Rio, aonde a maior parte daquela turma vivia, e aonde eu já havia morado há muitos anos, mas que revisitei graças àquela turma e voltei para casa atordoado com o quanto a cidade era sociável, como todo mundo se tratava como se já se conhecesse, como eu havia sido acolhido e bem tratado por gente que acabara de me conhecer, com a quantidade de vida que existia aqui. Em dois anos, já tinha até arrumado a desculpa para vir – estudar música na UFRJ, plano que se adaptou rapidamente para estudar música na Villa-Lobos quando eu falhei espetacularmente na prova de habilidade específica do vestibular. O importante era ficar. No meu primeiro ano morando aqui, eu não parava em casa. Sempre tinha uma reunião, uma festa, um encontro da galera. Passar um fim-de-semana sequer sem sair de casa me dava a sensação de ser enterrado vivo.

Mas ei, eu ainda tinha bastante tempo para dedicar a mim mesmo, aos livros, à música, ao ócio criativo. Morava sozinho e estava realmente curtindo toda aquela coisa de aprender a gerenciar uma casa, uma economia doméstica, etc. Fora que eu estudava piano, então tempo sozinho com uma música nunca me faltava.

Só que nessa época eu também já pagava minha conta telefônica, e também fazia meus horários, e o ritual de toda santa meia-noite me conectar no IRC e ficar jogando conversa fora era sagrado. Fins de semana, que tinham pulso livre, nem se fala. E não tardou a surgirem os provedores de internet discada que não cobravam pulso, e aí, podia muito bem ter jogado fora o aparelho telefônico da minha casa, porque a linha era do computador e de mais ninguém. Quem quisesse falar comigo que me mandasse um e-mail, ou me achasse no IRC, ou no meu ICQ, que vivia bombando, por sinal. Mais ou menos nessa época, ler qualquer coisa em papel começou a ficar relegado a trajetos de ônibus e metrô, mas o resto continuava firme e forte. Eu estudava, lia, ouvia músicas, escrevia, compunha. Foi uma época de ouro pra mim, para ser melhor só se eu tivesse qualquer tipo de sustentabilidade econômica ou responsabilidade com meus estudos, mas isso é detalhe. Estava vivendo o sonho colorido de qualquer artista.

Mas aí o calo apertou, a mesada encurtou, a matrícula jubilou e eu tive que me endireitar. O tempo pra mim já não era mais tão ilimitado, mas ainda estava lá, e eu ainda conseguia conciliar isso com a interação diária com vários amigos daqui ou do outro lado do mundo, que sempre estavam ali pra puxar uma conversa. Aí eventualmente vieram as tais das redes sociais, fotolog (heh), Orkut, e de repente eu conhecia um monte de gente (olha, mãe, mais de 100 amigos!) e tinha um monte de assuntos diferentes para debater, convenientemente divididos em comunidades, e sempre tinha gente fazendo chat coletivo no MSN, e às vezes eu conseguia ouvir música enquanto batia papo, e uma ou duas vezes por mês eu lia alguma coisa, mas quase sempre eram textos técnicos porque a faculdade (agora de informática -  não perguntem) tava puxada, e eu quase não conseguia prestar atenção nas poucas aulas que freqüentava, afinal os papos sempre se estendiam até altas horas e quando eu via já estava de manhã.

Hoje eu sou casado, pai de duas crianças lindas e hiperativas, trabalho há 8 anos no mesmo tribunal, pago aluguel e contas todo santo mês, e ainda assim consigo manter um bom nível de atividade em pelo menos 3 redes sociais, mais as outras sei lá quantas que eu uso esporadicamente, to sempre conversando com todo mundo no gtalk, e isso sem nem mencionar o fucking twitter, que eu to o dia inteiro espiando sempre que sobram 10 segundos pra puxar o smartphone do bolso.

Ou seja.

A triste realidade é que a vida social matou meu tempo particular. Sim, quem diria, o moleque sem vida social agora não consegue desgrudar da mesma por 90 minutos pra ouvir um disco do começo ao fim. Eu disse 90 minutos? Se um vídeo do Youtube tem mais de 8 minutos, eu preciso marcar hora na agenda pra assistir. Muito tempo! Pensa no quanto eu terei que rolar da timeline pra me manter interado quando voltar! Alguém pode morrer nesse meio tempo e eu vou perder todas as piadas e hashtags do momento!
A bem da verdade, o pouco de cultura que eu ainda consumo, é aquela que está socialmente em voga. Eu comecei a assistir séries de TV porque muita gente que eu conheço assistia e porque eu ficaria de fora das conversas se perdesse. Filmes, hoje em dia, só achando torrent dos lançamentos que estão sendo comentados (sim, porque ir ao cinema é um hábito morto e enterrado pra quem tem filhos pequenos em casa). Por outro lado, tenho visto muito mais TV, em especial TV aberta, especificamente o que quer que esteja sendo trending topic no twitter naquele exato momento, porque é um olho na TV e outro na grande rodinha de churrasco virtual que é aquele troço. Me desconectar das pessoas para fazer qualquer coisa sozinho é um ato consciente e que requer energia. Se deixar, eu passo a vida toda surfando o zeitgeist e só parando pra escutar o chiado do silêncio em uma mp3 mal editada por puro acidente.

E, que engraçado, esse chiado é que ativou a minha memória auditiva que desencadeou todo esse insight. É o som comum a todos aqueles momentos tão distantes entre si na história, aqueles pequenos segundos após o fim de uma música em que só o barulho da fita não gravada soava nos fones de ouvido. O último segundo antes de adormecer.

Acho que vou ouvir o chiadinho novamente.