20.6.13

A REVOLUÇÃO VIRAL - Como um grupo cultural previamente tido como irrisório mudou a balança política do país da noite para o dia

Tem sido impossível desgrudar da TV e da internet na última semana. E, por incrível que pareça, não é por causa da Copa das Confederações, que tem sido vendida como um ensaio geral para a Copa do Mundo de 2014. Ao contrário do que até o mais insano dos insanos poderia prever, os últimos dias viram a eclosão de um movimento político popular como o país não via há mais de 20 anos, bem no meio de uma edição de gala, em solo nacional, de um evento esportivo que o senso comum sempre ditou ser um grande alienador das massas. De lá para cá, tenho lido e assistido inúmeras análises, opiniões, palpites, até mesmo os bons e velhos "chutes" por parte de toda sorte de cientistas políticos, catedráticos, medalhões da mídia, etc. Tenho visto todas as esferas de poder, de todos os partidos, apavorados como se estivessem saindo do banho e encontrassem um urso feroz e faminto no meio do banheiro, no caminho da porta. Atordoados, eles tiveram que rever suas agendas políticas no susto sem nem ao menos entender como um urso daquele tamanho passou pela porta sem que eles notassem. A grande diversão da minha vida nos últimos dias tem sido imaginar o teor das reuniões de cúpula emergenciais que foram convocadas do Oiapoque ao Chuí. E mesmo agora, que a reivindicação inicial da turba foi atendida com um misto de contragosto e derrota pelos governantes das principais metrópoles do Brasil, ninguém ainda conseguiu entender a essência do movimento.

Bem, eu não sou cientista político, nem filósofo, e muito menos catedrático. Mas eu sou um integrante do que provavelmente foi o elemento chave que inverteu a ordem das coisas, um grupo cultural que até semana passada eu nem tinha real compreensão de que fazia parte, ou sequer que existia. Mas daqui de dentro, enxergo muitas peças que se encaixam perfeitamente e completam o quebra-cabeça que tem tirado o sono dos analistas políticos, e por isso acho que vale a pena tentar esclarecer e enriquecer o debate.

Para começar a explicação, vamos resgatar um termo que já saiu de moda, mas que curiosamente se encaixa melhor para explicar os eventos atuais do que qualquer jargão que surgiu desde então: Cibercultura. De acordo com a Wikipedia, o termo "[t]em vários sentidos mas se pode entender como a forma sociocultural que advém de uma relação de trocas entre a sociedade, a cultura e as novas tecnologias de base micro-eletrônicas surgidas na década de 70, graças à convergência das telecomunicações com a informática." O mesmo artigo diz que a Cibercultura não é uma cultura nova, mas sim o casamento da cultura pós-moderna com os canais de comunicação da era digital. Nisso, entretanto, eu discordo. Nos meus 17 anos de Internet, tendo vivenciado todas as formas de comunicação vigentes no período, desde a USENET até as Redes Sociais (a minha primeira foi o Friendster, e de lá pra cá estive em praticamente todas as relevantes), posso afirmar que, quanto mais tempo se passa interagindo socialmente online, mais se adquire características culturais próprias da rede. A facilidade de comunicação entre diversos povos e culturas foi se refinando numa "supercultura" que herda elementos de todos os participantes, mas que também adquire características bem definidas e, justamente por estar ainda em sua infância, praticamente desconhecidas de quem não tem contato com ela.

Conforme aumenta o número de pessoas conectadas no mundo, e conforme novos setores socioculturais anteriormente desconectados são integrados à internet, esse caldo cultural vai engrossando, se destacando mais da cultura local geográfica e social de cada um dos seus membros. Quanto mais tempo de contato com essa cibercultura uma pessoa tem, mais a cibercultura toma precedência sobre os traços culturais "offline," fazendo com que pessoas de diferentes países, diferentes criações, bandeiras, organizações sociais e políticas, passem a ter valores muito parecidos, a ter seus sensos de humor, de dever e de justiça  sintonizados, criando efetivamente uma classe global de indivíduos capazes de dialogar fluentemente entre si.

A maior característica dessa supracultura, de acordo com minhas observações dela ao longo dos anos, são: uma alta apreciação pela colaboratividade (herdada da cultura hacker dos pioneiros da internet), um senso crítico muito apurado (por vezes, até exagerado), um grande imediatismo (que vem do próprio imediatismo da comunicação através da rede), e uma exemplar tolerância a diferenças. Talvez por ser uma cultura colaborativa, aonde os consensos são efêmeros e muito raros, a geração - e uso esse termo muito livremente, uma vez que não existe faixa etária definita para a cibercultura, sua adesão estando ligada mais ao tempo de contato que o indivíduo teve com o coletivo online do que ao seu tempo de vida - não tem bandeiras e causas como as culturas do modelo geopolítico "clássico" costumam ter. Ao invés disso, a cibercultura acredita em iniciativa própria e a análise atomizada das questões propostas, algo que remete às democracias de vilarejos, aonde as assembléias eram constituídas pelos próprios cidadãos e cada um representava a si mesmo. Mas, ao contrário do regime democrático, cada cidadão na internet é seu próprio poder executivo. Isso significa duas coisas importantes para a análise dos acontecimentos dos últimos dias:

1. A cibercultura gira ao redor da idéia, não de um grupo representativo. Isso significa que pessoas com ideais diversos podem muito facilmente se reunir para apoiar e agir sobre uma idéia em comum que seja proposta, tão facilmente quanto discordam diametralmente em algum outro assunto; e

2. A ação na cibercultura não depende de aprovação majoritária, sendo que cada idéia ou proposta pode ser adotada por um grupo de simpatizantes que se unem para executá-la. Não existe restritividade na cibercultura, o que não significa que grupos minoritários não possam ser anulados pela ação de grupos majoritários. Mas é, de qualquer forma, uma questão de proatividade de todas as partes envolvidas.

Tendo estabelecido essas características fundamentais da cibercultura, é fácil de entender que a politização nesse ambiente cultural é um exercício diário e difuso, e o próprio ato de se expressar, nesse ambiente, é um ato politizado. No entanto, nos ambientes políticos do mundo físico, os conceitos da cibercultura encontram basicamente zero representatividade. Inclusive por serem conceitos antagônicos à própria democracia representativa; é inconcebível para alguém dessa nova cultura ter que escolher um representante que replique seus ideais com 100% de acuidade numa assembléia legislativa, e ainda mais inconcebível que só se possa fazer ajustes nessa representatividade a cada 4 anos. 4 anos é um eon no universo virtual. O próprio panorama sociocultural da internet muda drasticamente em 4 anos. A mudança de postura, a adaptabilidade, a proatividade que são essenciais à alma política de um "cibercidadão" são incompatíveis com basicamente todos os sistemas políticos existentes atualmente. Por isso, a despeito de ser extremamente politizado em sua essência, o cibercidadão se coloca como apolitizado para o sistema físico, que é um sistema que não o compreende, não o representa e nem o favorece.

Exatamente por esse motivo, a força política real desse grupo nunca foi testada ou medida até recentemente. Tanto porque a política externa à Rede não os enxerga (pois estão fisicamente pulverizados entre diversas camadas sociais e localizações geográficas), quanto porque eles, mesmos, ainda não têm uma identidade cultural sólida - prova disso sendo a incrível dificuldade que estou tendo nesse mesmo texto para classificá-los sem um rótulo apropriado, terminando por apelar para o horrendo "cibercidadão" ali em cima, mas como eu sou só um leigo opinando, é o que tem pra hoje.

Então, como exatamente um grupo sem identidade, sem autoconsciência e sem nenhuma representatividade foi o responsável por um terremoto social de enormes proporções que deixou o status quo de cabelo em pé e até mesmo os movimentos políticos estabelecidos sem entender nada do que está acontecendo?

A resposta está na análise de duas manifestações que são marcas registradas da cibercultura e que, essas sim, já são catalogadas e têm jargões próprios, facilitando o meu discurso: crowdsourcing e divulgação viral

Crowdsourcing (e seu derivado crowdfunding) é a formalização da característica apontada ali em cima de como o poder executivo na internet emana dos próprios cidadãos. Crowdsourcing é a proposta de um projeto que pode ser adotado e desenvolvido coletivamente por um grupo de interessados; Similarmente, crowdfunding é a proposta de um projeto que precisa de financiamento para ser executado e todos os interessados podem contribuir economicamente. Esses dois conceitos, particularmente o segundo, estão promovendo uma espécie de renascença industrial atualmente, à medida que eliminam o intermediário entre produtor e consumidor e invertem o fluxo da atividade econômica, que passa de "financiador -> produtor -> consumidor -> retorno ao financiador", para o mais elegante "consumidor -> produtor -> retorno ao consumidor." Projetos que não conseguem apoio suficiente para se financiar nem saem do papel, e os projetos que são executados já têm seu retorno de investimento quitado ao sair da porta. Além disso, note que o dinheiro e a iniciativa passam do privado (um financiador) ao público, o que não só elimina o intermediário como extirpa do mesmo o controle de decisão, colocando o consumidor no comando.

Divulgação viral, por outro lado, é menos uma ciência e mais um fenômeno catalogado, pelo menos por enquanto. Ocorre quando alguma coisa "atinge um nervo" da coletividade cultural e subitamente é compartilhada por milhões de pessoas voluntariamente. Numa mídia que tem poucos canais centrais de comunicação (e onde, por enquanto, esses canais ainda vivem pelos preceitos da neutralidade), a comunicação viral é a única que consegue fazer uma imagem, vídeo, texto ou idéia atingir o maior número de pessoas em relativamente pouco tempo, tendo um alcance semelhante ou maior que o dos canais midiáticos tradicionais, como televisão e periódicos impressos. O pequeno e essencial detalhe é que a divulgação viral acontece espontaneamente, e de alguma forma tentativas conscientes de usar esse canal de divulgação quase sempre naufragam, além de serem tidos como deselegantes na cibercultura. Desde que foi constatada, a divulgação viral virou a bala de prata do marketing mundial - quem for capaz de viralizar uma mensagem com sucesso terá o mundo nas mãos, já que divulgação viral, além de globalmente abrangente, também é essencialmente gratuita. Porém, mesmo os mais bem sucedidos casos de marketing viral proposital não se comparam ao poder de uma divulgação viral espontânea. Provavelmente porque a espontaneidade é a essência da viralização, e não existe forma eficiente de simular espontaneidade. E mesmo quando uma ação de marketing viral consegue enganar num primeiro momento, invariavelmente sua autenticidade vem a tona, e nada é mais ultrajante aos cibercidadãos do que uma tentativa camuflada de simular espontaneidade. É um tiro no pé que já derrubou vários marqueteiros aventureiros e que hoje em dia é amplamente visto como algo a não se fazer jamais.

E afinal, o leitor que sobreviveu até aqui se pergunta, o que isso tudo tem a ver com as manifestações que estão no tema do texto mas até agora nem deram sinal?

Aguentem um pouco enquanto eu faço uma breve recapitulação do momento político no país. Nos últimos 10 anos, depois de uma grande mudança de mãos no poder federal, o Brasil viveu um período particularmente ruim para o pensamento político. Quando antes haviam situação e oposição bem definidas e com suas próprias bandeiras, agora a esquerda supostamente estava no poder, a direita supostamente estava fazendo oposição, e a nova esquerda ficou para os partidos que antes eram considerados "extrema esquerda," com filosofias amplamente engessadas. Naquele momento, sentia-se coletivamente no país que alguma coisa havia mudado por força do voto popular (e havia). Porém, de lá para cá, a política brasileira parece ter se concentrado unica e exclusivamente na maioria dos votantes, que é o que ganha eleições, mas em detrimento de minorias que jamais serão representadas no voto mas que convivem e são sujeitas às políticas públicas da mesma maneira que as maiorias. Os membros da cibercultura - que por sinal aumentou incrivelmente de tamanho no Brasil nesse período, em grande parte graças à política de inclusão digital do próprio governo federal - se tornaram cada vez mais distantes da realidade política do país, não se reconhecendo mais em nenhuma bandeira de nenhum partido, e possivelmente nem no sistema democrático representativo, que começou a nos parecer ineficiente e impraticável para as dimensões do país. Ao mesmo tempo em que ganhamos liberdade de expressão, de criação e de consumo no mundo virtual, fomos vendo o cenário político do país ficar mais e mais abandonado por mentes progressistas e entregue às massas votantes. Dessa situação resultou um cenário político em que concessões mais e mais estapafúrdias eram feitas para agradar os setores mais populosos da sociedade, o que não teria problema não fosse o detrimento das liberdades pessoais das minorias, que agora estão sendo usadas como moeda política eleitoreira. Isso gerou grande insatisfação nessas minorias, e boa parte delas se uniu em movimentos sociais para tentar preservar seus direitos.

Paralelamente a isso, o advento das Copas da FIFA e dos Jogos Olímpicos criou um ambiente de oba-oba entre setores econômicos que, corrompendo os representantes políticos do país (alguns muito facilmente), conseguiram criar situações de lucros exorbitantes para si próprias, muitas vezes ilegais. Indícios e provas de irregularidades não faltavam, e alguns partidos que sempre se mobilizaram nas ruas começaram a se juntar na tentativa de pressionar o poder através de manifestações populares, que ganhavam força, mas não faziam nem cócegas no establishment.

Enquanto isso, toda uma cultura invisível se mantinha à margem da situação, apolitizada mas diretamente prejudicada pelos problemas do país, indignada mas apática. Talvez seja porque os indicadores e quantificadores das redes sejam tão nebulosos. As métricas para calcular o alcance das mídias sociais são ineficientes, os números podem ser facilmente maquiados, e, francamente, é de conhecimento de todos que o acesso à internet, especialmente acesso amplo e irrestrito por tempo suficiente para uma contaminação pessoal por parte da cibercultura, é coisa para poucos. Uma minoria. E se outras minorias não estavam conseguindo resultado mesmo fazendo bastante barulho, por que uma cultura que se afastara tanto do cenário conseguiria? Especialmente uma cultura sem identidade cultural forte - como descrito acima, cada idéia é atomicamente assimilada, criticada, compartilhada. Participação política tradicional é alienígena e obsoleta ao cibercidadão.

Mas eis que aconteceu algo que ninguém esperava. Uma causa se viralizou.

A bandeira do MPL não é nova - o movimento existe há anos, - o direito do MPL de ir às ruas protestar está petrificado na Constituição Nacional, a causa é nobre, mas fazia pouca diferença para cibercidadãos. Causas políticas assim são compartilhadas diariamente pelas redes sociais e normalmente comovem os mesmos grupos de ativistas. Havia, sim, uma crescente indignação com a política espetaculosa e desrespeitosa que estava marginalizando mais e mais setores da sociedade e focando apenas nas maiorias eleitorais, mas a tampa da panela de pressão ainda estava no lugar, começando a apitar.

E então, as redes sociais explodiram em compartilhamentos e vídeos de brutalidade policial. Não aquela a que já nos anestesiamos, contra pobres e "bandidos," mas uma violência descabida, desenfreada, descontrolada, que atingiu jovens manifestantes, transeuntes, repórteres, e quem mais quisesse. Não era um vídeo, não eram dois vídeos. Eram dezenas de vídeos, centenas de relatos, de pessoas das mais variadas, todas descrevendo o mesmo abuso autoritário do governo que deveria ser democrático.

Ao mesmo tempo em que esse cenário se delineava claro como água nas redes sociais, a mídia televisiva e jornalística insistia numa linha editorial claramente mentirosa e manipulativa, ditada por diretores totalmente desconectados do fluxo de informação da geração cibernética, ainda alheios ao tamanho e ao alcance dos mesmos. Por dois dias, a internet contava uma história, com clareza pristina de detalhes, e a televisão contava outra totalmente diferente. Era impossível não ver. Era impossível não se revoltar. Policiais espancando estudantes é uma situação muito delicada e que fala diretametne à memória emotiva recente da nação. Então, da mesma forma que um grupo de cibercidadãos às vezes se reúne para pagar milhões de dólares em férias para uma senhora qualquer que sofreu bullying por parte dos alunos do ônibus escolar que fiscalizava, houve uma comoção para reagir ao bullying do estado nos meninos que estavam ali exercendo um direito fundamental de se manifestar.

De repente, a idéia de descer pra rua e olhar para a cara dos policiais e dizer "e aí, vai bater na gente agora?" conectou pessoas de diferentes idades, diferentes estados, diferentes formações e opiniões. Todos unidos em torno da idéia de que governar na base do cacetete é inaceitável.

E então, de uma hora para a outra, havia 200 mil pessoas na rua em todo o país.

E, surpreendentemente até para quem estava ali na rua, descobriu-se que os cibercidadãos marginalizados pelo sistema político do país eram mais do que números no Google Analytics, mais do que quantidades de likes. Era GENTE PRA CACETE. Tanta gente, que ninguém conseguiu entender de onde havia saído. Governantes e a velha mídia olhavam pela janela e viam uma quantidade de cabeças que, da última vez que eles tinham visto, derrubaram regimes. Claro, eles não tinham como saber que aquela gente ali toda jamais concordaria sequer em se prefere pipoca doce ou salgada, que dirá com agendas políticas extensas. Estavam todos ali pra ajudar os moleques que apanharam. Pra estabelecer que as ruas são públicas. E mais nada. Era mais um flashmob do que uma manifestação propriamente dita

Mas esses conceitos modernos fogem à compreensão da classe política brasileira, e por vários dias, o que vimos (de minha parte, com muito prazer) foi políticos, cientistas, repórteres, todos batendo cabeça, como baratas tontas, procurando um líder, uma agenda, um insuflador, algum elemento familiar que os ajudasse a lidar com aquela surrealidade toda. Não encontraram. Mas, no pânico, as grandes emissoras deram uma cambalhota e imediatamente reverteram seus discursos editoriais em favor do povo nas ruas, considerando-os a nova "situação." E então, abandonados e apavorados, os políticos cederam ao menos a causa do MPL, em coletivas simultâneas, ensaiadinhas, borrando-se de medo.

O que aconteceu de lá para cá com esse movimento-que-jamais-foi é, tintim por tintim, a vida útil de um meme (termo coloquialmente utilizado para descrever termos, jargões ou cenas que se viralizam na internet). Numa consequência newtoniana, a massa de pessoas nas ruas no dia 16 criou uma força gravitacional irresistível, que por sua vez atraiu todos os outros movimentos sociais, de TODAS as orientações, desesperados por não estarem juntos na boquinha. Até o MPL venceu a causa mas também não compreendeu a motivação nem a origem do reforço que recebeu, e passou a querer nortear o movimento maior por suas próprias pautas. Assim como marqueteiros tentando criar ações virais, as ruas agora estão lotadas de insufladores e líderes de movimentos tentando viralizar uma nova causa. Quem sabe o que acontece com um meme velho na internet sabe que isso não tem futuro. A manifestação nas ruas é aquela piada que já perdeu a graça (sempre rápido demais, característica da cibercultura) mas que vai passar as próximas semanas no topo dos trending topics enquanto todo tipo de setor da sociedade tenta manter a chama viva para tentar comandá-la para algum lugar. No fim das contas, ainda tem muita gente nas ruas, mas são essencialmente as pessoas que já iam às ruas antes, em datas diferentes, com agendas diferentes. Imagino quanto tempo mais esses movimentos tão opostos vão suportar gritar palavras de ordem em uníssono, mas arrisco que muito pouco.

Por outro lado, não foi um dia menos importante ou menos histórico pela falta de uma causa maior. Pelo contrário. Vivenciamos a materialização da política como ela é praticada diariamente na internet, só que dessa vez nas ruas. Olhamos para os lados e subitamente conseguíamos enxergar o rosto de todos aqueles likes e compartilhamentos e RTs que vemos discretamente representados diariamente nas redes sociais. A cibercultura se colocou no mapa das culturas, meio sem querer, mas agora que abrimos precedente, quem há de dizer que não estaremos menos desmotivados a expressarmos nossos ideais na rua, ao lado dos movimentos sociais que estiverem com a razão naquela questão, naquele momento? Podemos nos sentir solitários no dia-a-dia, convivendo com pessoas que não compreendem nossos valores e nossa cultura, mas se todo mundo descer o elevador ao mesmo tempo, lotamos a rua, estremecemos a mídia e até dobramos governos. É como descobrir um superpoder latente, mesmo sem saber ainda como controlá-lo. Pelo menos, agora sabemos que temos.

Nesse momento, vejo muita gente frustrada por ter visto tanta gente na rua, com tantas insatisfações, e isso não ter dado em nada além de uma dissolução inevitável do momento. Eu digo que não se frustrem. Pelo contrário, se orgulhem. E tenham boas esperanças de voltar a serem cidadãos offline, porque com essa visibilidade, com essa noção de conjunto, podemos até tentar criar partidos e organizações que nos representem propriamente mesmo nessa democracia que temos. Há exemplos disso no mundo. A tendência é que isso ocorra em todo lugar, então por que não começar agora?

E quanto ao medo de que algum aproveitador manobre esse momento para fins escusos, digo que não vai acontecer. As peças que já estavam no tabuleiro continuarão lá, jogando seu joguinho. Mas a peça-surpresa, a cultura desconhecida, que deu o cheque-mate, não tem nenhuma vocação para ser manobrada. Assim como o primeiro marqueteiro que conseguirá efetivamente criar uma peça viral de sucesso provavelmente ainda está no segundo grau, o primeiro político que entenderá suficientemente da dinâmica política da cibercultura para conseguir manobrá-la certamente está nas fraldas. É preciso crescer nesse meio para compreendê-lo. Por enquanto, estamos seguros.

Valeu a experiência, valeu o precedente, valeu o empoderamento de ter metido a cara no mundo e feito os poderosos, que se sentiam tão seguros, darem piruetas desgovernadas diante dos olhos do mundo. Valeu a piada de chegar no cenário político com um extintor no melhor estilo Didi Mocó. E pro futuro, tenho a certeza que não precisaremos mais de um absurdo tão grande quanto opressão policial estatal pra levantarmos nossas bundas e irmos twittar in loco, com cartazes, nas ruas. Já temos nosso case de sucesso, agora é estudá-lo e melhorá-lo

Não foi o gigante que acordou, foram as formigas que tomaram conta.


2.4.13

Química


Das matérias do currículo escolar brasileiro, Química nunca foi a minha favorita - entre as ciências, preferia a Física - mas um professor meu do segundo grau fez certa vez uma apresentação da matéria na aula inaugural que eu nunca esqueci. Especificamente, ele reclamou da moda publicitária de colocar a frase "não contém química" em produtos de beleza, que era bem comum nos anos 90. "Existe essa idéia idiota de que química é algo ruim," disse ele, "mas absolutamente todos os produtos de beleza contém química. Qualquer efeito que um produto de beleza tenha na sua pele, nos seus cabelos, é química. Não existe nenhuma transformação no mundo sem química."

Esse mês, o meu diagnóstico de TDAH completa 10 anos. O tratamento efetivo começou mais tarde, em maio de 2003, mas foi em abril que eu descobri que essa sigla iria me definir pelo resto dos meus dias, e que eu deveria no mínimo me familiarizar com ela e com seu significado. E o significado, resumidamente, era que minhas dificuldades crônicas de concentração, de manter atenção, de absorver informação, de resguardar e dosar minha energia, eram todas decorrentes de uma deficiência química do meu cérebro, e que existiam pílulas capazes de, se não reverter 100%, ao menos modificar o equilíbrio dessa química para que eu me comportasse diferente.

Na época, muita coisa mudou na minha vida, como esse texto demonstra. O problema foi quase que totalmente solucionado, mas eu sabia que os comprimidos que tomava não eram só uma reposição nutricional, que eles não continham "atenção concentrada" pronta para consumo. Eles modificavam totalmente o equilíbrio químico do meu organismo, e provavelmente essas mudanças refletiam em todo o meu comportamento, não apenas na capacidade de atenção. Mas na época, era difícil analisar. Era tudo muito novo, muito diferente, e o remédio não era o único fator causando reações químicas no meu cérebro. A própria euforia de estar conquistando um obstáculo que tanto havia me atrapalhado entrava na receita e contribuía com o resultado final. Tanto que, previsivelmente, essa fase passou, vieram outras fases, outros fatores, e eu nunca estive realmente estabilizado em um mesmo estado de funcionamento por mais do que uns 2 anos. O próprio consumo da Ritalina nunca foi processado da mesma forma pelo meu corpo por muito tempo, e recentemente tive que encarar o fato que, mesmo mantendo religiosamente o tratamento por 9 anos seguidos, eu estava mais TDAH do que nunca, e precisava trocar de remédios. Achei um novo remédio que me fez muito bem, mas trouxe efeitos colaterais (tiques e espasmos musculares) tão incômodos que agora estou procurando um segundo remédio que anule os efeitos colaterais desse primeiro. Como qualquer tratamento que visa o equilíbrio químico do cérebro humano, as doses e combinações precisam ir sendo testadas e o tempo de estabilização do efeito das drogas no organismo precisa ser respeitado. Além da consciência de que mesmo quando um equilíbrio satisfatório for alcançado, ele terá prazo de validade. O corpo se adapta, se modifica com os anos. Cuidar da química cerebral é uma responsabilidade para a vida toda.

Hoje fazendo um balanço desses dez anos, percebo que muitas outras coisas mudaram drasticamente em mim com o tratamento. Claro que nem tudo é culpa ou efeito do remédio, afinal dos 22 aos 32 há tempo e vivência suficiente para mudar a personalidade e o comportamento de qualquer pessoa, independente de condição psiquiátrica. Mas hoje eu sei que muitas coisas em mim mudaram enquanto eu não estava olhando - ou melhor, enquanto eu estava fascinando descobrindo um lado meu que o TDAH havia impedido de aflorar até então. Antes, eu era muito criativo, muito impulsivo, tinha muita fome de tudo, mas não tinha a capacidade de levar nada adiante, de dar a regularidade e o foco que meus impulsos necessitavam para se materializarem. Depois do diagnóstico, um mundo novo de possibilidades se abriu para mim, e eu passei a ser capaz de estudar, aprender, praticar, todas essas coisas que antes eram impossíveis -  mas os impulsos foram pouco a pouco desaparecendo. De certa forma, estar apto a realmente absorver o mundo me fez perder o interesse por atuar nele. Hoje em dia, meu maior problema é ter a capacidade e as ferramentas para transformar meus projetos em realidade, mas não ter nenhum projeto. Mesmo os que eu já que eu tinha antes do início do tratamento, quando me proponho a levar adiante agora, não me causam mais aquele ímpeto criativo, aquele turbilhão de idéias e projeções, aquela vontade quase irresistível de botar as engrenagens em movimento. Em dez anos, me tornei um ávido consumidor de informação, mas deixei de ser um criador.

Mas isso não quer dizer que minha criatividade tenha definhado ou que o mundo tenha me decepcionado ou coisa parecida. Na verdade, isso tudo tem a ver com uma única coisa: química. Meu professor do segundo grau me deu uma lição mais profunda do que eu era capaz de compreender na época, mas que hoje é uma verdade fundamental para mim: tudo é química, tudo contém química. Não só o TDAH ou a depressão ou os chamados "transtornos" psiquiátricos em geral, mas tudo. Tudo o que se passa dentro da nossa cabeça é uma reação química. Sem entrar no mérito do que é a alma ou qual seu papel no nosso funcionamento, mas nossas sinapses são reações eletroquímicas na sua forma mais pura. Nosso metabolismo é química. Nosso ganho e nosso gasto energético são química, e cada organismo é um circuito único, com seu próprio código genético que rege suas próprias reações químicas. Não apenas nossa racionalidade, mas nossas emoções, sensações, nossa percepção, tudo isso é decorrência direta do nosso equilíbrio químico.

Essa noção é ao mesmo tempo libertadora e opressiva. Saber que nossas emoções e idéias podem ser descritas com modelos matemáticos e influenciadas com catalisadores e inibidores nos dá um enorme poder sobre nossa própria vida ao mesmo tempo em que tira boa parte da nossa ilusão de livre arbítrio. Se todas as coisas que nos fizeram rir de felicidade ou chorar de tristeza na vida foram estímulos que desencadearam reações químicas em nosso corpo, nos levando ao riso ou ao choro, isso faz desses momentos mais ou menos reais? A famosa máxima que diz que a paixão é quimicamente equivalente ao consumo de grandes doses de chocolate faz dela um conceito falido? A poesia do amor é anulada quando concluímos que amar é sofrer uma série de reações químicas desencadeadas por estímulos transmitidos, voluntaria ou involuntariamente, pelo sujeito amado?

Minha avaliação, evidentemente, também é influenciada por reações químicas - em outros estados "de espírito" o raciocínio poderia ter sido completamente outro - mas ela parece cientificamente razoável. E vai ao encontro de noções universais contemporâneas, que dizem que existe uma engenharia para tudo, desde foguetes até comportamento de massa. As pessoas que abraçam essa noção, a de que nós somos uma combinação de elementos da tabela periódica, ficam livres de diversas armadilhas emocionais e de várias questões existenciais francamente inúteis. E menos susceptíveis ao controle externo por parte de líderes espirituais, publicitários, chantagistas emocionais, engenheiros sociais e demais grupos de indivíduos que aprenderam a lucrar com as reações químicas previsíveis do organismo.

Mais do que isso, aceitar que a química cerebral de cada um influencia imensamente no racional, no emocional e no físico de um indivíduo é aceitar que pessoas percebem, reagem, sentem e processam as coisas de forma diferente. É aceitar que nem todo mundo tem a mesma facilidade ou dificuldade para se concentrar, para aprender, para emagrecer, para produzir. E daí vem a incômoda verdade que cada um tem uma dificuldade maior ou menor de enfrentar as mesmas coisas, e que igualdade de oportunidades passa necessariamente por distribuir assimetricamente as condições, quando o instinto social espera que todas as pessoas ao nosso redor se ajustem aos nossos valores e recebam as exatas mesmas doses de tudo que nós recebemos. E essa verdade nos tira o tão precioso maniqueísmo a que nos agarramos para distribuirmos julgamentos de valor e morais. Não existem mais pessoas más, gordas, vagabundas, burras, dissimuladas; Existem pessoas cuja química cerebral desvia da curva normal. É uma extinção instantânea dos bodes expiatórios que são, por sua vez, um estímulo químico do qual quase todos nós dependemos. Um mundo sem culpados é um mundo sem sentido.

Mas tenho minhas dúvidas se isso é realmente tão ruim. Ou, ao menos, se é pior do que ver pessoas escravas de seus circuitos internos, dependentes de suas dopaminas e endorfinas que abominam a ideia de saciar a necessidade com drogas (lícitas ou ilícitas) mas que passam a vida buscando estímulos "naturais" que tenham o mesmo efeito dos sintéticos mas que dependem ou interferem com aspectos da vida alheia. Por exemplo, pessoas viciadas no rush da paixão (um estado químico que depende diretamente do estímulo transitório causado pela novidade) que destroem relacionamentos e vidas racionalizando uma dependência química. Ou pessoas que confundem desequilíbrio químico com vazio existencial e passam a acreditar piamente que não existe forma de se sentirem confortáveis no mundo ou na sociedade, com consequências trágicas. Uma vez que sabemos a origem do problema, mesmo ainda não havendo tecnologia para uma solução satisfatória (no meu caso, algo que consiga acertar o fio da balança entre meu estado racional e meu estado criativo), ao menos há menos desespero. São moinhos, e não gigantes.

Claro que essa postura é bastante cínica e não há nada de errado em ignorá-la momentaneamente para continuar vendo lirismo e espiritualidade nas coisas da vida. Mas lirismo, como tudo na vida, é melhor se utilizado com parcimônia.