2.4.13

Química


Das matérias do currículo escolar brasileiro, Química nunca foi a minha favorita - entre as ciências, preferia a Física - mas um professor meu do segundo grau fez certa vez uma apresentação da matéria na aula inaugural que eu nunca esqueci. Especificamente, ele reclamou da moda publicitária de colocar a frase "não contém química" em produtos de beleza, que era bem comum nos anos 90. "Existe essa idéia idiota de que química é algo ruim," disse ele, "mas absolutamente todos os produtos de beleza contém química. Qualquer efeito que um produto de beleza tenha na sua pele, nos seus cabelos, é química. Não existe nenhuma transformação no mundo sem química."

Esse mês, o meu diagnóstico de TDAH completa 10 anos. O tratamento efetivo começou mais tarde, em maio de 2003, mas foi em abril que eu descobri que essa sigla iria me definir pelo resto dos meus dias, e que eu deveria no mínimo me familiarizar com ela e com seu significado. E o significado, resumidamente, era que minhas dificuldades crônicas de concentração, de manter atenção, de absorver informação, de resguardar e dosar minha energia, eram todas decorrentes de uma deficiência química do meu cérebro, e que existiam pílulas capazes de, se não reverter 100%, ao menos modificar o equilíbrio dessa química para que eu me comportasse diferente.

Na época, muita coisa mudou na minha vida, como esse texto demonstra. O problema foi quase que totalmente solucionado, mas eu sabia que os comprimidos que tomava não eram só uma reposição nutricional, que eles não continham "atenção concentrada" pronta para consumo. Eles modificavam totalmente o equilíbrio químico do meu organismo, e provavelmente essas mudanças refletiam em todo o meu comportamento, não apenas na capacidade de atenção. Mas na época, era difícil analisar. Era tudo muito novo, muito diferente, e o remédio não era o único fator causando reações químicas no meu cérebro. A própria euforia de estar conquistando um obstáculo que tanto havia me atrapalhado entrava na receita e contribuía com o resultado final. Tanto que, previsivelmente, essa fase passou, vieram outras fases, outros fatores, e eu nunca estive realmente estabilizado em um mesmo estado de funcionamento por mais do que uns 2 anos. O próprio consumo da Ritalina nunca foi processado da mesma forma pelo meu corpo por muito tempo, e recentemente tive que encarar o fato que, mesmo mantendo religiosamente o tratamento por 9 anos seguidos, eu estava mais TDAH do que nunca, e precisava trocar de remédios. Achei um novo remédio que me fez muito bem, mas trouxe efeitos colaterais (tiques e espasmos musculares) tão incômodos que agora estou procurando um segundo remédio que anule os efeitos colaterais desse primeiro. Como qualquer tratamento que visa o equilíbrio químico do cérebro humano, as doses e combinações precisam ir sendo testadas e o tempo de estabilização do efeito das drogas no organismo precisa ser respeitado. Além da consciência de que mesmo quando um equilíbrio satisfatório for alcançado, ele terá prazo de validade. O corpo se adapta, se modifica com os anos. Cuidar da química cerebral é uma responsabilidade para a vida toda.

Hoje fazendo um balanço desses dez anos, percebo que muitas outras coisas mudaram drasticamente em mim com o tratamento. Claro que nem tudo é culpa ou efeito do remédio, afinal dos 22 aos 32 há tempo e vivência suficiente para mudar a personalidade e o comportamento de qualquer pessoa, independente de condição psiquiátrica. Mas hoje eu sei que muitas coisas em mim mudaram enquanto eu não estava olhando - ou melhor, enquanto eu estava fascinando descobrindo um lado meu que o TDAH havia impedido de aflorar até então. Antes, eu era muito criativo, muito impulsivo, tinha muita fome de tudo, mas não tinha a capacidade de levar nada adiante, de dar a regularidade e o foco que meus impulsos necessitavam para se materializarem. Depois do diagnóstico, um mundo novo de possibilidades se abriu para mim, e eu passei a ser capaz de estudar, aprender, praticar, todas essas coisas que antes eram impossíveis -  mas os impulsos foram pouco a pouco desaparecendo. De certa forma, estar apto a realmente absorver o mundo me fez perder o interesse por atuar nele. Hoje em dia, meu maior problema é ter a capacidade e as ferramentas para transformar meus projetos em realidade, mas não ter nenhum projeto. Mesmo os que eu já que eu tinha antes do início do tratamento, quando me proponho a levar adiante agora, não me causam mais aquele ímpeto criativo, aquele turbilhão de idéias e projeções, aquela vontade quase irresistível de botar as engrenagens em movimento. Em dez anos, me tornei um ávido consumidor de informação, mas deixei de ser um criador.

Mas isso não quer dizer que minha criatividade tenha definhado ou que o mundo tenha me decepcionado ou coisa parecida. Na verdade, isso tudo tem a ver com uma única coisa: química. Meu professor do segundo grau me deu uma lição mais profunda do que eu era capaz de compreender na época, mas que hoje é uma verdade fundamental para mim: tudo é química, tudo contém química. Não só o TDAH ou a depressão ou os chamados "transtornos" psiquiátricos em geral, mas tudo. Tudo o que se passa dentro da nossa cabeça é uma reação química. Sem entrar no mérito do que é a alma ou qual seu papel no nosso funcionamento, mas nossas sinapses são reações eletroquímicas na sua forma mais pura. Nosso metabolismo é química. Nosso ganho e nosso gasto energético são química, e cada organismo é um circuito único, com seu próprio código genético que rege suas próprias reações químicas. Não apenas nossa racionalidade, mas nossas emoções, sensações, nossa percepção, tudo isso é decorrência direta do nosso equilíbrio químico.

Essa noção é ao mesmo tempo libertadora e opressiva. Saber que nossas emoções e idéias podem ser descritas com modelos matemáticos e influenciadas com catalisadores e inibidores nos dá um enorme poder sobre nossa própria vida ao mesmo tempo em que tira boa parte da nossa ilusão de livre arbítrio. Se todas as coisas que nos fizeram rir de felicidade ou chorar de tristeza na vida foram estímulos que desencadearam reações químicas em nosso corpo, nos levando ao riso ou ao choro, isso faz desses momentos mais ou menos reais? A famosa máxima que diz que a paixão é quimicamente equivalente ao consumo de grandes doses de chocolate faz dela um conceito falido? A poesia do amor é anulada quando concluímos que amar é sofrer uma série de reações químicas desencadeadas por estímulos transmitidos, voluntaria ou involuntariamente, pelo sujeito amado?

Minha avaliação, evidentemente, também é influenciada por reações químicas - em outros estados "de espírito" o raciocínio poderia ter sido completamente outro - mas ela parece cientificamente razoável. E vai ao encontro de noções universais contemporâneas, que dizem que existe uma engenharia para tudo, desde foguetes até comportamento de massa. As pessoas que abraçam essa noção, a de que nós somos uma combinação de elementos da tabela periódica, ficam livres de diversas armadilhas emocionais e de várias questões existenciais francamente inúteis. E menos susceptíveis ao controle externo por parte de líderes espirituais, publicitários, chantagistas emocionais, engenheiros sociais e demais grupos de indivíduos que aprenderam a lucrar com as reações químicas previsíveis do organismo.

Mais do que isso, aceitar que a química cerebral de cada um influencia imensamente no racional, no emocional e no físico de um indivíduo é aceitar que pessoas percebem, reagem, sentem e processam as coisas de forma diferente. É aceitar que nem todo mundo tem a mesma facilidade ou dificuldade para se concentrar, para aprender, para emagrecer, para produzir. E daí vem a incômoda verdade que cada um tem uma dificuldade maior ou menor de enfrentar as mesmas coisas, e que igualdade de oportunidades passa necessariamente por distribuir assimetricamente as condições, quando o instinto social espera que todas as pessoas ao nosso redor se ajustem aos nossos valores e recebam as exatas mesmas doses de tudo que nós recebemos. E essa verdade nos tira o tão precioso maniqueísmo a que nos agarramos para distribuirmos julgamentos de valor e morais. Não existem mais pessoas más, gordas, vagabundas, burras, dissimuladas; Existem pessoas cuja química cerebral desvia da curva normal. É uma extinção instantânea dos bodes expiatórios que são, por sua vez, um estímulo químico do qual quase todos nós dependemos. Um mundo sem culpados é um mundo sem sentido.

Mas tenho minhas dúvidas se isso é realmente tão ruim. Ou, ao menos, se é pior do que ver pessoas escravas de seus circuitos internos, dependentes de suas dopaminas e endorfinas que abominam a ideia de saciar a necessidade com drogas (lícitas ou ilícitas) mas que passam a vida buscando estímulos "naturais" que tenham o mesmo efeito dos sintéticos mas que dependem ou interferem com aspectos da vida alheia. Por exemplo, pessoas viciadas no rush da paixão (um estado químico que depende diretamente do estímulo transitório causado pela novidade) que destroem relacionamentos e vidas racionalizando uma dependência química. Ou pessoas que confundem desequilíbrio químico com vazio existencial e passam a acreditar piamente que não existe forma de se sentirem confortáveis no mundo ou na sociedade, com consequências trágicas. Uma vez que sabemos a origem do problema, mesmo ainda não havendo tecnologia para uma solução satisfatória (no meu caso, algo que consiga acertar o fio da balança entre meu estado racional e meu estado criativo), ao menos há menos desespero. São moinhos, e não gigantes.

Claro que essa postura é bastante cínica e não há nada de errado em ignorá-la momentaneamente para continuar vendo lirismo e espiritualidade nas coisas da vida. Mas lirismo, como tudo na vida, é melhor se utilizado com parcimônia.