25.9.12

The 2nd Law - Review


E eis que, finalmente, o tão aguardado novo álbum do Muse, The 2nd Law, ganhou o mundo. Apesar de ainda não ter sido oficialmente lançado, a banda o disponibilizou para reprodução online em diversos serviços de streaming gratuitos ao redor do mundo. Ele pode ser ouvido em alta qualidade aqui ou aqui. Vão lá, eu espero.

Ok. Então que, depois do texto que eu escrevi aqui outro dia sobre o single Madness, pelo menos alguém deve ter ficado curioso para saber o que eu achei do disco completo. Tá, provavelmente ninguém, mas eu vou escrever assim mesmo, no mínimo pra tentar tirar do meu sistema e conseguir falar de QUALQUER outro assunto nas redes sociais. Vamos lá.

Antes de mais nada, meu texto anterior era cheio de previsões e palpites (i.e. chutes presunçosos), então nada mais natural do que iniciar esse review analisando se minhas previsões estavam certas ou erradas. A resposta é clara como a neve: sim e não.

"Epa, como assim?" pergunta o leitor hipotético, "Ou o álbum seguiu o caminho que você previu, ou não seguiu, certo?" Mais ou menos. Acontece que, contrariando todas as expectativas, The 2nd Law é basicamente um álbum duplo contido num único disco. Até certo ponto, é um tipo de álbum, que confirma brilhantemente minhas expectativas. Aí rola uma parada (mais sobre isso a seguir), e ele vira outro álbum, totalmente diferente, totalmente na contramão do que meu texto dizia. Porque esse é o Muse, vc acha que tá jogando par ou ímpar e eles mandam um número irracional pra te descadeirar de vez.

Comecemos então a análise pela primeira parte de T2L, a parte "hit parade" do disco. As cinco primeiras faixas do álbum: Supremacy, Madness, Panic Station, Prelude e Survival (as duas últimas são na verdade uma música só), são exatamente aquilo tudo que minha análise de Madness esperava que o disco fosse. São músicas comerciais, super produzidas, formatadas direitinho para seus respectivos objetivos: Prelude/Survival para ser a música tema dos jogos olímpicos, Madness para ser o single quebra-gelo, Panic Station para ser o segundo single (já confirmado) e milimetricamente calculada para explodir nas pistas de dança norte-americanas, e Supremacy - e não tem nada de oficial no que eu vou dizer agora além da obviedade blatante da sonoridade da faixa o gato saiu do saco, vide adiante - para ser o tema do próximo filme do 007, Skyfall, que infelizmente acabou ficando com a Adele. Cada uma dessas músicas é o perfeito exemplo de tudo que eu venho falando sobre o Muse desde o meu review de The Resistance, sobre eles terem dominado o processo criativo e agora conseguirem fazer qualquer tipo de música muito bem.

Eu sei que tem muita gente que me viu colocar Supremacy ali no meio das músicas comerciais e já quer minha cabeça. É fato que Supremacy é uma obra prima, uma faixa monstruosa, emocional, explosiva, e a melhor faixa de abertura de CD da história do Muse (não dizendo que ela seja melhor que New Born ou Sunburn, apenas que, como faixa de abertura, é mais apropriada). Não há como negar. Mas também não há como negar que ela foi feita tão sob "encomenda" quanto Survival. Eu não fui nem de longe o único a gritar "eita, James Bond!" quando escutou Supremacy pela primeira vez, e depois de ouvir a versão de estúdio, que tem um acorde em guitarra havaiana no final (que ficou de fora da versão ao vivo), eu tive certeza. O Matt já tinha dito publicamente que queria fazer a música do próximo filme do agente secreto, e agora que a música ficou pública, parece que o próprio Dominic Howard já nem faz questão de esconder as pretensões da faixa. Essa música é claramente o motivo principal do Muse ter escolhido trabalhar com o David Campbell como arranjador do disco novo, e valeu cada centavo com certeza. Além disso, Supremacy traz de volta um elemento fundamental da sonoridade do Muse nos primeiros discos, que eles ainda não tinham utilizado a contento nessa nova era de composições calculadas: a explosão. Unnatural Selection, uma das minhas favoritas do Resistance e a mais pesada do CD, era um desfile de texturas de rock n' roll que o Muse nunca tinha usado antes, uma forma deles dizerem "ei, a gente consegue fazer som porrada de qualquer tipo, escolha o seu," mas justamente por ser uma paleta aberta, eles omitiram as cores "padrão" da banda. Aliás, isso pode ser dito de todo o Resistance e, em boa parte, do BH&R também - a banda estava focada em ampliar seu portifólio musical, o que gerou muita coisa boa e interessante, mas naturalmente distante do que eles já sabiam fazer com maestria. The 2nd Law encerra esse ciclo, e tanto Supremacy quanto a controversa Survival são, em seu cerne, o Muse explosivo "das antigas" coberto de caramelo e confeitos e chantilly e polido e platinado e mais quantos acabamentos se imaginar, texturizados para soar exatamente como o projeto pedia.

Se ainda tem alguém querendo me degolar por ter dito que Supremacy foi construída ao invés de esculpida (ou, pior, que ela e Survival são músicas gêmeas), talvez seja hora de rever seus conceitos e aceitar que o Muse consegue fazer canções épicas, arrebatadoras e tão monstruosas quanto as clássicas sem precisar vomitar emoções num papel. E funcionam tão bem quanto. Claro, o zigoto que gerou Supremacy é, antes de tudo, um riff que eles usavam durante Citizen Erased nas apresentações ao vivo, então talvez seja uma questão genética, mas eu prefiro acreditar que eles são bons músicos que sabem o que estão fazendo, ao contrário de gente que acha que o Muse só foi bom naquela época.

Sobre Madness, já falei bastante e mantenho minha opinião.

Panic Station, por outro lado, é uma delícia. Nunca houve qualquer dúvida que ela seria o segundo single, é tudo parte do plano. Madness é a amaciada no bife, uma música simples e de fácil digestão feita pra chamar a atenção de quem não estava olhando (e conseguiu), e Panic Station é um  Whooper triplo com bacon extra e queijo e picles e cebola caramelada em forma de música, que é pra viciar o consumidor. Musicalmente, ela não tem nada a ver com nada que o Muse já fez. A base dela é o funk americano (mais uma vez, qual será o mercado que eles estão mirando? mistérios...) mas a mixagem, a produção, são irresistivelmente deliciosos. Quem não dança com Panic Station, bom sujeito não é. Perto dela, as outras faixas dançantes do Muse parecem brincadeira de primário. Se o topo das paradas norte-americanas não vierem dessa vez, olha, é muito estigma e má-vontade, porque PS é muito próximo do single pop perfeito.

E aí vem Survival, que, todos estão carecas de saber, foi o tema das Olimpíadas de Londres. Muita gente, para minha estranheza, despreza Survival. Já a li ser chamada desde "piada" até "corporate bullshit." O mais estranho é que, como já falei, ela e Supremacy são faixas irmãs. Ambas feitas com um propósito, buscando uma sonoridade e um clima específico. Ambas com letras bem vazias (aliás, salvo uma única exceção, as letras de The 2nd Law são todas bem descartáveis). Ambas são corporativistas. Nenhuma das duas é uma piada (a única música de piada do Muse até hoje permanece sendo United States of Eurasia, e foi uma piada que perdeu a graça bem rápido). Se a letra não faz nada pela música além de reforçar o que a melodia deveria te fazer sentir, como aquele nosso amigo lerdo que fica falando em voz alta tudo que está subentendido, é porque um tema olímpico realmente não tem lá grandes motivos pra ter letra. Mas ignorando essa parte, Survival é perfeita para o que se propõe, e é explosiva e emocionante como nada do Muse tinha sido desde Knights of Cydonia. Enfim, eu gosto e ouço sempre.

E até esse momento, The 2nd Law está super encaminhado para ser um cartão de visitas da banda, só faltando o telefone de contato e o "fazemos orçamento sem compromisso" impresso na capinha, e está tudo prontinho para que eles desembarquem em Hollywood como a Next Big Thing e tal, e eis que, assim que rolam os surdos do final de Survival, algo acontece e muda tudo.

Soam as batidas do coração de uma criança pelos alto-falantes da sala de ultrassom.

E The 2nd Law vira outro álbum. Um álbum tão cheio de emoções, conflitos, e - ironicamente - um álbum com um conceito muito bem definido. Um álbum que reflete o coração conflituoso do Bellamy como Showbiz e Origin of Symmetry refletiam. Um álbum sobre paternidade, sobre família. Um álbum que pega tudo que eu achei que sabia sobre a banda, amassa e joga no incinerador. Para nossa alegria.

Follow Me, a música que abre esse segundo e não-relacionado disco também entitulado The 2nd Law , é uma música que eu até agora, várias reproduções depois, ainda não consegui ouvir até o final sem ficar com um nó na garganta e os olhos marejados. Talvez porque eu também tenha virado pai nesses últimos 3 anos, também tenha escutado o coração do meu filho pelos alto-falantes e sentido o peso do mundo se retorcer em cima dos meus ombros em uma fração de segundo que muda tudo (e voltamos a essa simetria bizarra que me faz me refletir no Matt desde 2001, sempre em fases de vida parecidas a cada novo disco). Ela começa com o coração do neném, e logo entra a voz do pai. Arrastada. Derrapando. Escolhendo as palavras. E as palavras que ele escolhe são as mais simples e óbvias do mundo. E é o poema de amor mais bonito que ele já escreveu.

A música inteira é como a recuperação de um choque de realidade, da realização repentina que aquele pequeno coração batendo no sistema de áudio vai enfrentar tudo o que o nosso próprio coração já enfrentou, todas as dores, todos os sustos, os apertos, e a necessidade de dizer para aquela criança que nós estamos ali. Não temos a resposta para tudo, mas estamos ali. Na dúvida, nos siga, que a gente dá um jeito. É a síntese absoluta da sensação da paternidade, é um amor todo doido, todo incondicional que nasce na gente depois de macaco velho, de já nos acharmos experts em amor. Follow Me tem a letra mais simples de todo o disco - mais até que de Survival e de Madness - e no entanto é a mais profunda. Porque todas essas coisas são só o que se consegue dizer diante dessa experiência.

Daí em diante, seguem-se três faixas que mostram que Bellamy está APAVORADO diante da perspectiva de ter botado um filho no mundo. Deve ser difícil mesmo pra um teórico de conspirações assumido (o Chris revelou que ele chegou a estocar comida e se preparar para a chegada dos aliens na época em que compôs Resistance, ou seja, ele vai fundo na parada). Esse trecho é o que faz de The 2nd Law uma obra complexa, que acompanha a aceitação do pequeno Bingham pelo pai.

Animals é minha favorita do disco. Tematicamente, ela fala sobre corporações que se comportam como animais, passando por cima de tudo e de todos para enriquecer e se tornar o topo da cadeia alimentar. Aquele velho bla bla bla. Mas musicalmente, ela é um retorno súbito e inesperado ao Muse da era Absolution, despida de toda a superprodução do resto do álbum, apenas os três tocando seus instrumentos de sempre (guitarra+teclado, bateria e baixo), com muito poucos efeitos. É a música mais melancólica que eles se permitiram fazer em anos, e é aquele sinal que eu estava esperando que, por baixo de toda a produção e toda a megalomania, eles continuam tão bons quanto sempre foram. Junto com Supremacy, Animals traz de volta, em circunstâncias bem diferentes, o segundo elemento que andava falatando nos discos atuais do Muse, aquela já discutida alma. E também é um ato de coragem do Bellamy, que já disse semi-brincando que desistiu das letras pessoais e passou a fazer álbuns-conceito porque se sentia muito exposto. O "segundo" T2L é - musicalmente - quase um raio-x na alma do cara. Uma pena que ele continue se escondendo nas letras. Mas é o que eu sempre digo, paternidade amadurece as pessoas, certeza que ainda veremos muita coisa sincera vinda dele.

Se Animals é a melancolia, Explorers é a aceitação. A dicotomia entre a melodia de canção-de-ninar e a letra que diz que ter nascido foi "um erro aprisionando minha alma" e pedindo que "liberte-me deste mundo" poderia ter deixado a música, que fala sobre a raça humana esgotando os recursos e a beleza naturais do planeta, com um tom sombrio. Mas a sensação que ela passa é justamente a contrária. Quando a letra passa da primeira pessoa do singular para o plural, é como se Bellamy dissesse ao filho "eu entendo, eu também não pedi pra nascer, esse mundo é cheio de merdas, mas nós estamos juntos." e termina com um beijo de boa noite e com uma cumplicidade reconfortante entre pai e filho.

Já em Big Freeze, Matt já parece ansioso pela chegada do neném. A letra pede, genericamente, perdão pelos erros passados, e diz que estamos próximos de um "grande congelamento" mas ainda há chance de consertar as coisas. "Não deixe o sol em seu coração esmaecer," diz a letra. A batida é animada, a harmonia é contagiante, e traz a promessa de redenção e de coisas novas e boas. Exatamente o que um filho traz, um recomeço. Posso estar muito fora de linha aqui, mas nada no mundo vai me convencer que essas quatro músicas - Follow Me, Animals, Explorers e Big Freeze - não são uma pequena jornada pelo coração do Matt desde o momento em que descobriu que seria pai até pegar o filho no colo pela primeira vez. Eu sei que eu mesmo senti todas essas coisas - do medo de não ser um bom pai à emoção de poder criar meus filhos para serem melhores do que eu - e na falta de prova em contrário, é assim que o disco soará para mim eternamente.

Nesse ponto, temos as duas faixas compostas e cantadas pelo Chris, Save Me e Liquid State. As músicas são, primariamente, sobre a recente batalha dele contra o alcoolismo, e como ele quase chegou ao fundo do poço. Mas as músicas não foram escritas para ele, ou para a garrafa. Foram escritas para a família, que ele diz ter sido fundamental no processo de recuperação. E isso fica absolutamente evidente em Save Me, que é uma homenagem e um agradecimento à esposa e aos filhos que tiveram coragem de enfrentar todos os subterfúgios dele e trazê-lo de volta. Liquid State tem um tom mais raivoso, de desgosto com os efeitos da bebida e talvez consigo mesmo, por ter se deixado quase destruir, mas também remete ao socorro que ele precisou para sair do buraco. Duas músicas diferentes mas que se completam, e que contam como um homem foi salvo pelo amor da família. Nada mais natural que elas estivessem no "segundo" álbum.

Sonoramente, é claro que as faixas do Chris são bem diferentes do que se costuma ouvir nas faixas do Muse, mesmo as mais produzidas, mas acho muito exagerado dizer que elas destoam do resto. Panic Station destoa bem mais da curva normal do Muse do que Liquid State. Talvez seja o choque causado pelos vocais do Chris, que são claramente mais graves e arranhados do que a voz soprada e suave do Matt a que estamos acostumados, mas tirando isso, ambas as faixas são musicalmente bem consistentes com a banda na qual o cara toca há quase 20 anos, como não poderia ser diferente.

Arrematando o álbum, temos duas faixas instrumentais, Unsustainable e Isolated System, que, a exemplo da sinfonia Exogenesis, também são uma única obra, homônima do álbum, dividida em duas partes. Consolidando minha teoria dos dois álbuns, cada uma delas serve como um resumo, por assim dizer, das duas partes de The 2nd Law. Unsustainable tem uma grandiosidade calculada, orquestrada, intercalada com trechos eletrônicos inspirados pelo dubstep e com uma narração que alerta para a impossibilidade do modelo econômico atual se sustentar usando a segunda lei da termodinâmica (entropia) como argumento. Unsustainable é uma música com uma missão, e independente do quão bem ela a cumpra, ela reflete a alma da primeira parte do disco, um disco com uma missão - colocar o Muse entre os grandes nomes do rock mundial, vender bilhões, virar o novo U2 (aliás, não por acaso, quase todas as faixas de ambas as partes de T2L soam muito como o U2, um reflexo da enorme influência que a banda sofreu dos irlandeses durante o ano que passaram juntos em turnê).

Isolated System é uma viagem progressiva maravilhosa que se baseia em um riff de piano e uma batida ritmada eletrônica, aonde instrumentos e samples vocais chegam e saem, numa montanha russa emocional que é basicamente o tema da segunda parte de T2L. A mesma aula de física de Unsustainable agora ecoa vagamente ao redor da batida, como se nada mais tivesse tanta importância, nada fosse tão urgente. Vozes de coral, cordas, samples, todos eles passam pela espinha dorsal da música, às vezes, próximos, às vezes longe, mas nunca por muito tempo. Até que, ao final da música, a batida eletrônica lentamente vai se transformando novamente no que ela sempre foi: a mesma batida do coração do pequeno Bingham Bellamy, que lá na metade do disco sequestrou a concentração do pai no meio de seu discurso de vamos-salvar-o-planeta e o jogou nessa realidade maluca que é a paternidade e a formação de uma família. No final das contas, entendemos que Isolated System é, basicamente, a representação de como o bebê, de dentro do sistema isolado do útero materno, percebe seu pai.

O mais curioso é que ambas as partes de The 2nd Law, mesmo consideradas independentemente, soam melhores do que The Resistance. Sem desmerecer o álbum de 2009, a banda evoluiu quase que em todos os aspectos de lá pra cá. As músicas de trabalho do Second Law são melhores que as músicas de trabalho do Resistance. As músicas de coração, por mais que eu goste da faixa-título do anterior, também são melhores. E T2L é pessoal num nível que nem o Resistance, nem o Black Holes & Revelations se permitiram ser, o que faz maravilhas pela profundidade artística da obra.

Espero que daqui pra frente, o Muse deixe pelo menos um pedacinho de seus futuros álbuns reservados para faixas sem tanta maquiagem, nem que seja pra gente renovar o respeito pelos arranha-céus musicais que eles se especializaram em erguer do zero.

25.8.12

O novo single do Muse (e o que ele significa para a banda)


Quem me conhece sabe que o Muse é minha banda favorita desde meados de 2002. Por muito tempo fui dono da comunidade Muse Brasil no Orkut, segui a banda nos 3 primeiros shows que eles fizeram no Brasil, em 2008, e escrevi um longo texto no forum do MuseBrasil.com sobre eles na época do último álbum, The Resistance, onde falava basicamente sobre a trajetória da banda até então e sobre a minha relação com a música deles. Resumindo, Muse é um dos poucos assuntos sobre o qual eu me permito ainda escrever posts inúteis como esse aqui promete ser. Sigam por sua conta e risco =P

Pois bem. Em algumas semanas, o Muse lançará seu sexto álbum de estúdio, The 2nd Law, e nos últimos 2 meses a ansiedade veio crescendo em progressão geométrica, inclusive com a revelação gradual de três das 13 faixas do novo disco. No entanto, não escapou a ninguém o fato de que cada uma das 3 faixas já reveladas são bem diferentes das outras, e a mais recente - Madness, o primeiro single - gerou uma repercussão entre os fãs como eu não via desde que Supermassive Black Hole apareceu e fez alguns xiitas cortarem os pulsos (ok, talvez nem tanto, mas o dono da maior comunidade de Orkut da banda na época deletou a mesma num surto de raiva e muitos outros na MB abandonaram revoltados, só pra citar alguns chiliques). Aquela velha história de "OMG Muse acabou" e "Muse se vendeu" e etc. Dessa vez, curiosamente, eu não acredito que estejam de todo erradas. Mas acho que a surpresa é desmedida. Explico:

Madness não é a primeira balada soft do Muse, nem de longe. Nem tampouco a primeira faixa carregada na produção eletrônica - fora a guitarra durante o solo e a bateria, não há um único instrumento na faixa que não esteja pós-processado à exaustão - tendo sido precedida por Map of the Problematique e Undisclosed Desires, além da própria SMBH que só é rock ao vivo, em estúdio é um dance track. A diferença é que Madness foi escolhida como o single do novo álbum, e tem sido universalmente elogiada como a melhor música deles até hoje, inclusive pelo próprio Matt, para horror e confusão dos fãs, que se perguntam o que será que está acontecendo.

Bem, eu tenho algumas teorias (ou esse post não existiria).

Primeiro, devemos lembrar que Supermassive também foi o primeiro single de Black Holes & Revelations. Quem é fã de longa data lembra bem dessa época e do motivo dessa decisão. O Muse já tinha 3 álbuns de estúdio e mais dois DVDs ao vivo, enchia arenas na Europa, e quando entraram no estúdio vinham do maior show de suas vidas, Glastonbury 2004, um show que até hoje eles descrevem como um marco na trajetória da banda, o show em que eles perceberam que sua música podia mover as massas e alçá-los ao patamar de um U2. Só tinha um pequeno problema.

Eles não conseguiam igualar esse sucesso nos EUA por mais que tentassem.

Nessa época começou uma certa obssessão musical do Muse pelo mercado fonográfico norte-americano. O topo das paradas estadunidenses viraram, pra exemplificar de forma clara, a Libertadores corinthiana da banda. Eles tentaram de tudo, formataram sua sonoridade pra se encaixar no gosto ianque, priorizaram os singles "acessíveis" (o segundo single do disco, Starlight, é uma música dessas feitas pro público bater palminhas no show e pras patricinhas desmioladas gritarem "AI MINHA MÚSICAAAAAA" e cantarem junto a única que conhecem) e inclusive fizeram algo que eles mesmo admitem que foi como vender a alma para o demônio - viraram a banda de destaque na trilha sonora de Crepúsculo. E mesmo negociando as próprias pregas morais desse jeito, o Muse continuou sendo uma banda de nicho nos EUA (e, pra piorar, o lance com Twilight os estigmatizou de tal forma que foi um tiro no pé, tanto que se recusaram a continuar a farsa e abandonaram a trilha dos próximos filmes).

Então por que será que eles insistem e colocam Madness como abre-alas do novo álbum? Bem, ao que tudo indica, porque quem persiste eventualmente vence.

Nos dias que se seguiram ao lançamento de Madness, a positividade recebida pelos próprios figurões da indústria é um alento para o (ex-)power trio. Se as opiniões inflamadas de Chris Martin, do Coldplay - a maior autoridade em soft-rock-mela-cueca-que-vende-discos-a-rodo em atividade -, que chamou Madness de "a melhor música do Muse até a data," ou de quem quer que estivesse usando o twitter oficial do Keane quando postou que Madness "recuperou sua fé na música britânica," entre outros, servir de parâmetro, eu diria que o Muse também vai ganhar sua Libertadores em 2012 (ê, aninho...). A transformação daquela banda introspectiva que transformava angústia em linhas melódicas simultaneamente complexas e cruas em um sucessor do U2 como reis do rock-coxinha de lotar arenas está completa.

Agora, isso é novidade? Não, né? Black Holes & Revelations saiu em 2006. Isso foi 6 anos atrás. 6 anos e 2 álbuns inteiros, mais um b-side e 3 faixas novas agora. Tempo suficiente pra qualquer pessoa de bom senso notar que o Muse não é mais a banda do Origin of Symmetry e do Absolution. Se chocar com o rumo que The 2nd Law está tomando é mergulhar de cabeça no maior poço de amnésia seletiva do mundo. Nada do que eu disse acima é novidade pra qualquer pessoa que tenha lido uma única entrevista deles nesse período. O Muse pós-Glastonbury sempre almejou ser uma banda acessível e universal. Eles pararam de se refletir nas músicas e começaram a, conscientemente, passar mensagens. A mudança nas letras entre as duas fases da banda é a maior prova disso. Até o Absolution, eram fios-de-consciência truncados, obscuros, e muitas vezes resultado de viagens de cogumelo (que a banda usava pesadamente quando compôs o Origin). Dali pra frente, quando o Bellamy começou a decidir previamente sobre o que gostaria de falar, acompanhar a evolução das letras do Muse passou a ser como acompanhar a evolução do seu filho nas aulas de redação. A gente fica orgulhoso com o progresso, mas não vamos nos enganar e dizer que são poesias =P

Musicalmente, também, já passou da hora dos fãs pararem de esperar um álbum no estilo do que foram os 3 primeiros. Essa época acabou. Aquelas músicas que pareciam tão guturais e que ao mesmo tempo traziam riffs tão desproporcionalmente rebuscados? Não vendem. Me lembro até hoje de ouvir Sunburn pela primeira vez e pensar "caralho, esse moleque toca piano a sério" ou ouvir Plug In Baby e pensar "faz tempo que não ouço uma música contemporânea com um riff de guitarra tão empolgante e que não descamba pra punheta técnica estilo Yngwie Malmsteen ou John Petrucci," ou mesmo da primeira vez que os vi tocando ao vivo e pensei "CARALHO peraí ele toca piano e guitarra assim NO PALCO? Não foram 23 takes de estúdio??" e é uma época que eu me lembro com muito carinho, mas não tenho esperança nenhuma de ver a banda tocando nada desse naipe outra vez. Faz tempo. Hoje em dia o Muse destilou esse som e o engarrafou pra usar como apenas um dos vários ingredientes de suas músicas. E muito se engana quem diz que Muse agora soa genérico - qualquer pessoa que detesta a banda te dirá de cara que a música deles é sempre reconhecível, sempre "a mesma coisa." A textura musical que eles criaram ainda está lá, só que agora ela é dosada, calculada, formulaica. Nunca sobrando. Nunca tão espremida dentro do tempo de execução que parece que vai vazar, explodir, nos engolir (New Born e Stockholm Syndrome, estou olhando para vocês).

Isso faz com que o Muse atual seja ruim? Não. Pelo contrário. As 3 músicas que já conhecemos do 2nd Law provam que Bellamy, Howard e Wolstenholme se tornaram um canivete suíço musical, capazes ao mesmo tempo de escrever um tema olímpico, uma balada que transcende gêneros, e uma peça que mistura a orquestração dos clássicos com a textura do eletrônico de vanguarda. Três músicas que podiam ter sido escritas por três bandas diferentes, e que ao mesmo tempo gritam "Muse" por todos os poros. Matthew Bellamy continua sendo o cara que botou um um estudo de virtuose pianística no meio de um rock cheio de distorções e gritos e com uma letra emotiva, chamou de Sunburn e explodiu meu cérebro, mas agora quando ele escreve riffs rodopiantes, ele transforma em peças orquestrais inteiras; quando ele sente necessidade de falar da vida amorosa, ele escreve, lê, lê outra vez, calcula a métrica, escreve uma melodia exclusiva praquele sentimento, e lança uma balada perfeita. Quando ele quer socar o estômago do ouvinte com um vagalhão sonoro, ele mistura a progressão harmônica de Take a Bow ao piano estacado de USoE e bota um coral no meio da história. Tudo calculado. E continua excelente. Bem, exceto talvez nas letras, mas nosso garoto tá melhorando, vai! =P

Mas também não dá pra dizer que o Muse é o mesmo de quando eu ouvi pela primeira vez. Eu passei dias ouvindo Survival e a própria Madness no repeat quando foram lançadas, da mesma forma que ouvi Muscle Museum por duas SEMANAS a fio naquele distante 2002, e tem sido assim com todos os singles de todos os álbuns deles, basicamente. A característica "chiclete" é perene. Mas as músicas do Showbiz, do OoS e do Absolution eram tão cheias de nuances que mesmo agora, anos depois, eu ainda escuto coisas novas nelas. Tenho certeza que isso não acontecerá com Madness, assim como já não aconteceu com Undisclosed Desires que, após o fim do período de repeat intenso, virou uma faixa que eu já nem presto atenção direito quando ouço. Não porque ela seja ruim, mas porque essas faixas pop se esgotam rápido (e é pra ser assim, afinal o pop vive de rotatividade). E se tem uma coisa que me deixa triste quando penso no Muse de ontem e de hoje é lembrar de um cartaz na platéia do show do Le Zenith, imortalizado no primeiro DVD deles, Hullabaloo, que dizia "Thanks for bringing back the soul to rock n' roll." Esse cartaz, que tanto me representou, está obsoleto. A alma que o Muse trouxe de volta já não está mais lá. Foi engarrafada e posta a serviço da vontade. E teria que ser, por questões de sobrevivência. Não acredito que a banda tivesse durado muito mais se eles não tivessem saído da adolescência musical e começado a tratar a música como seu ganha-pão. Nada de inglório nisso, e, verdade seja dita, temos 3 discos e um cacetão de B-Sides daquela época pra onde corrermos quando quisermos aqueles arrepios. Mas música desse tipo, agora, só quando surgir o próximo Muse.

Talvez, eventualmente, a banda resolva fazer como o Radiohead que depois de muita estrada resolveu abrir um parêntese e escrever o OK Computer 2 (a que chamou de Hail To The Thief), fez sucesso, e seguiu de onde tinha parado. Talvez no aniversário de 15 anos do Absolution (já que o de 10 tá muito perto) eles façam um Absolution 2. Mas não esperem o raio caindo no mesmo lugar pela segunda vez. Se esse disco acontecer, será obra de uma autoreferência (ou auto-paródia) consciente, e o som pós-processado pode se disfarçar de seminal (ou talvez eles façam como o Foo Fighters que gravou um disco "de garagem" e teve um estrondoso sucesso com ele, ganhando Grammys de baldada) mas será ainda resultado de uma reunião pra decidir e compôr as músicas que eles querem, não vai ter nenhum poema saindo de fundo de gaveta, nenhum jam session de ensaio se tornando riff e brotando em música. Claro que esses momentos provavelmente ainda existem, mas eles virarão uma ou duas músicas, não mais uma filosofia como já foram.

Mas enfim, é cedo demais pra falar, o disco ainda não saiu, sabemos que ele tem coisas novas (duas faixas inclusive escritas e cantadas pelo baixista Chris Wolstenholme num momento bem intenso da vida dele, a luta contra o alcoolismo, que todos nós esperamos que soem como o Muse de antigamente, as chances são boas) e ainda tem 10 faixas pipocando por aí que podem desdizer tudo que eu escrevi aqui em cima. Ou podem confirmar. Não estou apostando grana em nenhuma das opções, mas estou, sim, bem otimista com a possibilidade de pelo menos alguma delas se tornar uma das minhas favoritas de todos os tempos, como a faixa-título de Resistance se tornou mesmo 3 anos depois de lançado o último álbum. Estou fazendo figa! Hope that means something =P

23.3.12

Adeus inocência


A despeito dos impulsos que eu volta e meia tenho, é raro usar esse blog pra comentar alguma notícia (ok, é raro usar esse blog, ponto). Mas ontem uma série de acontecimentos gerou uma situação bastante curiosa no Twitter, dessas que eu tenho vontade de comentar mas jamais conseguiria fazê-lo em parcelas de 140 caracteres - ou seja, um assunto sobre o qual tenho uma opinião elaborada. Em 140 caracteres só cabem palavras de ordem e julgamentos absolutos.

Um tempo atrás, um burburinho no Twitter chamou minha atenção a uma das páginas mais ofensivas que eu já tive o desprazer de conhecer, e olha que eu tô nessa tranqueira de internet desde 1996: um blog entitulado "O Perdedor Mais Foda do Mundo," assinado por um (obviamente fictício) Silvio Koerich, onde o autor postava textos de conteúdo chocante, destilando ódio e ofensas aos mais variados grupos sociais e étnicos - negros, nordestinos, judeus, mulheres, quase um minucioso e abrangente catálogo de preconceitos. E não eram apenas ofensas, o negócio descambava pra ameaças de morte, incitação escancarada a violência, pedofilia, estupro e assassinato. Fotos explícitas de crimes bárbaros, posts ameaçadores endereçados a personalidades reais, enfim. O pacote completo.

A princípio, encarei como obra de algum desses incontáveis moleques perturbados que usam o anonimato da internet pra dar vazão a todas as suas fantasias de poder e que satisfazem uma necessidade imperativa de atenção abraçando causas socialmente inaceitáveis ou criminosas apenas pra causar celeuma. Já vi muito disso, nesses 16 anos de interwebz, e a verdade é que, com o tempo, o modus operandi desses "trolls" foi gradualmente se refinando. O que antigamente era só alguém escondido atrás de um apelido xingando muito no IRC ou em listas de discussão pra receber imediatamente a gratificação da revolta alheia, com o tempo foi se fantasiando de causa "legítima." Os iconoclastas já não se contentavam em revoltar pequenos grupos ou pessoas específicas em troca de um flame war pra aquecer as noites solitárias. Eles foram aprimorando o discurso. A era pós-11 de Setembro os ensinou que qualquer coisa pode ser legitimada se tratada como uma opinião política (que por sua vez justifica qualquer merda, contanto que se acredite fanaticamente nela). Idiotices milenares como criar páginas e foruns pra zombar e ofender vítimas de desastres que comovem a opinião pública passaram a ser uma forma de "protesto" contra o "establishment." Boçais se reuniam em grupos que tinham "bandeiras" - meras desculpas para a masturbação egóica, agora coletiva, que eles promoviam sob forma de "ataques" ou publicação de opiniões absurdas. Toda essa idiotice, pra mim, sempre foi apenas uma pantomima pra justificar - para outros e para si mesmos - o que essas besteiras sempre foram: carência de atenção.

Talvez por isso mesmo, meu cérebro estivesse condicionado a processar postagens abjetas como a do tal blog do "Sílvio Koerich" (que, agora se sabe, é o nome de um outro blogueiro que os donos do blog começaram a usar sem autorização como represália ao cara) como meras hipérboles da fantasia de um molecote espinhento que não consegue se impôr nem se enquadrar na sociedade e usa a internet pra se passar por alguém poderoso, seguro e dominante. Como de praxe. Denunciei, é óbvio, porque mesmo absolutamente fictícios, o conteúdo dos posts já era suficientemente criminoso para tal. Mas nunca na vida imaginaria que os donos daquela pocilga já fossem adultos formados, com emprego fixo, e um deles com meio milhão de reais na conta vindos não se sabe de onde. Tive um choque de realidade ontem ao ler a notícia. Não são moleques com delírios de grandeza. São adultos, emancipados, economicamente ativos, e psicologicamente perturbados. Isso é muito grave, porque molecotes espinhentos normalmente não têm outra forma de dar vazão a suas psicoses que não na interação textual pela internet. Mas adultos com dinheiro, esses podem fazer estrago. E, pelo que a Polícia Federal indicou, eles tinham planos reais e materiais de fazer estrago. A porra ficou séria.

Isso me fez repensar muitos dos meus comportamentos padrão, em especial o de achar que a internet é feita de adolescentes e pré-adolescentes. Curioso que essa noção não tem nenhuma razão de ser além do fato de que EU era adolescente quando entrei aqui, de que na minha experiência pessoal todos os idiotas que causavam revolta na internet também ERAM adolescentes. Foi nessa época que meu "streetwise" online se formou e foi assim que eu encarei toda e qualquer briga online desde então, como rusguinha de adolescentes que são super machões online mas, na hora do vamos-ver, olham pro outro lado com cara de cu. Claro que desde aquela época existem sites de terroristas, de nazistas, grupos organizados de praticantes de crime de ódio, etc. Mas, primeiro, aqui no Brasil isso era meio que lenda até agora. Rola muito submundo de pedofilia na internet brasileira, mas submundo de racismo pra mim era coisa de americano e europeu. Não mais. Adolescentes trollzinhos não angariam 500 mil reais nem mapas esquemáticos de casa de festa de faculdade onde se pretende encenar um massacre armado. Isso não é pilha pra conseguir atenção. Isso é doença de verdade, e os doentes estão aqui entre nós. Pra mim, ao menos, acabou a farra dos flame wars e das trollagens sem medo de ser feliz. Acabou o cinismo de achar que tudo é trollbait. Vou tomar bem mais cuidado com isso a partir de agora.

E eu sei que não sou o único a rever meus conceitos depois dessa história. Ontem, depois da prisão de dois dos envolvidos no tal site, uma treta sem precedentes eclodiu na minha timeline do Twitter, em que um grupinho acusava outro de ter dado moral ao Silvio Koerich ao retwittar um texto (bem tosco, diga-se) do cara sacaneando o feminismo. A despeito de achar que nenhum dos dois grupos envolvidos lidou com a situação de forma adulta (e não faço críticas porque, como eu, todos deviam estar ainda atordoados com a notícia), acho que o episódio ilustrou muito bem a necessidade de um amadurecimento de conceitos como o que eu me comprometi a adotar ali em cima. Boa parte dessa galera, assim como eu, foi criada nas tretas online de molecagem, e provavelmente também não leva(va) a ferro e fogo certos tipos de provocações. Todos nós já estivemos lá - jogar uma bomba da discórdia no meio da discussão para inflamar os ânimos. É uma técnica clássica para desestabilizar o interlocutor. Nesse espírito, muitos dos sujeitos que não se bicam com o movimento ultrafeminista (que, como todos os movimentos, tem uma causa - justa - no seu cerne, mas que adapta a contundência de sua argumentação de acordo com os interlocutores. Só que quando se fala grosso com quem precisa de grosseria num meio generalista como a internet, pessoas razoáveis também lêem e se sentem trespassadas pelo tom e consequentemente antipatizam com as causas justas por aversão aos argumentos) e costumam usar um machismo irônico nas discussões unicamente para irritar as "adversárias," foram pegos ontem de calças curtas com suas arrobas associadas ao Silvio Koerich (o original, não o fake criminoso) por terem retuitado um desses textos trollbait do cara. Na boa e velha internet-moleque de anteontem, eu teria dado risada do texto. Hoje, o buraco é mais embaixo. E claro que muita gente perdeu a mão ao apontar o dedo pra essa situação, e muita gente perdeu a cabeça ao se defender. Eu vi até gente partindo pra ameaça de processo (e aqui reservo-me ao direito, mesmo tendo prometido ali em cima levar a internet mais a sério, de considerar isso a técnica mais velha, mentirosa e boçal de intimidação do planeta. Pelo menos isso não vão me tirar.) e pouca gente dos dois lados da questão - basicamente o Pablo Villaça e o Israel "Izzy" Nobre - racionalizando a parada e transformando a guerra de cocô em uma reflexão válida. Espero que, conforme os ânimos vão se acalmando, outras pessoas façam o mesmo. Eu estou fazendo.

A internet ficou um pouco menos divertida com essa história, mas também ficou um pouco mais segura - felizmente, ANTES de ter consequências desastrosas.

22.2.12

Epifânia acidental


31 anos nesse mundo, aparentemente, ainda não foram suficientes para aprender a driblar alguns caprichos do meu organismo. Não, não me refiro a qualquer tipo de malfuncionamento intestinal, relaxem. Falo da minha espécie pessoal e bastante peculiar de insônia. O carnaval desse ano coincidiu com o fim das minhas férias e também o fim de uma era aqui em casa, já que a partir da quinta-feira os meninos começam a freqüentar a escolinha, e a preparação espiritual e química (e lícita, antes que alguém pergunte) para essa mudança iminente fez com que eu dormisse muito pouco nos últimos 3 dias, coisa de 7 horas ao todo (um sono de 3h e outro de 4) entrecortando outras 65 acordado. Hoje, véspera da quarta-feira de cinzas, a idéia era estar tão moído que adormeceria à meia-noite e ajustaria pois os horários.

Heh. Claro que, a despeito do total comprometimento com o plano, de ter deitado na hora programada, no quarto escuro e silencioso, de ter confirmado a existência do sono (diversas viagens de ônibus ao longo da adolescência e vida adulta me levaram a desenvolver uma forma de perceber se estava ou não a ponto de adormecer, mesmo quando não havia manifestação física – bocejos, olhos pesados - de sono. Basicamente, eu fecho os olhos e conto quantas imagens aleatórias surgem na minha cabeça, e com que freqüência. Quanto mais nítida e menos coerente a minha torrente de pensamentos estiver, mais perto de dormir eu estou. Isso era crucial para decidir a hora de interromper a leitura ou guardar o discman antes de capotar e sem ter que ficar entediado por muito tempo até finalmente embarcar de vez), o planejamento foi um fracasso retumbante. Cheguei a sentir o relaxamento muscular que precede o apagar da consciência, mas, olhai e regozijai-vos, o sono me evadiu completamente de uma hora pra outra (provavelmente com uma gargalhada maligna) e cá estou eu.

Na vã tentativa de implorar pela volta desse sono que me deixa só, liguei a caixinha de som de cabeceira, selecionei alguns discos só de piano, boa parte dos quais são meus chama-sono desde aquela época das viagens de 17h num Itapemirim sacolejante, e fechei os olhos. Resultado? A insônia agora havia virado uma súbita inspiração para escrever. Bom trabalho, cérebro!

E é por isso que estou aqui, com o notebook apoiado na barriga, passando calor, e escrevendo a atualização trienal do blog para falar por parágrafos sem fim sobre... ouvir música num quarto escuro.

Eu sempre tive uma relação especial com as artes, em especial com música. Pode-se argumentar que a música, por suas características, é uma forma de arte que evoca reconhecimento independente da vontade do interlocutor (e acreditem quando digo que há uns bons anos existe um rascunho de texto sobre o assunto circulando pelos meus axônios só esperando uma luz verde neuronal para ser devidamente produzido) , mas não seria correto afirmar que todo mundo tem o mesmo envolvimento com música. A música é a linguagem universal, mas cada um tem seu próprio nível de compreensão de discurso. Da mesma forma que duas pessoas que sabem perfeitamente falar português podem entender ou não entender o mesmo texto, digamos, um livro do Stephen Hawking – duas pessoas que “falam” música (e para tanto basta ter alma) podem extrair da mesma harmonia um intrincado enredo ou apenas algumas sílabas monótonas. Poderia ir bem mais longe nessa linha de argumentação, e pretendo, mas em outro texto. O foco de hoje é outro, e só evoquei essa introdução para explicar que não estou sendo pedante ou redundante ao estabelecer minha relação com a música como algo extra-ordinário.

Como de praxe na minha vida atualmente, resolvi analisar essa reflexão errática que brotou na minha cabeça quando eu deveria estar roncando e lapidá-la em alguma lição que eu possa passar para meus filhos. E sempre que eu me proponho a fazer isso eu acabo embarcando numa das minhas boas (?) e velhas viagens de autoanálise, dignas dos primeiros anos desse blog, só que agora com uma causa nobre e um tanto a mais de objetividade (ou não, vejam quantas linhas já escrevi e ainda nem terminei o abstrato). E a primeira coisa que eu notei é que essa situação, de estar no escuro, ouvindo uma música de olhos fechados, me transporta imediatamente a vários momentos da minha infância e juventude em que eu fazia exatamente isso. Em vários pontos da vida, em várias situações, em vários estados evolutivos, essa atividade esteve presente, e eu nunca tinha pensado sobre isso.

Também fui perceber que todas as memórias dessa situação, TODAS, são boas lembranças. Mesmo quando, na hora, eu estava mal (e não foram poucas as vezes em que eu estava, de fato, péssimo), a lembrança é acolhedora. E outra coisa que me espantou foi constatar que, todas as vezes que eu fiz isso, eu atingia o ápice da minha introspecção. Nas lembranças, sempre estou total e verdadeiramente sozinho. E, francamente, eu nunca fui um grande fã de ficar sozinho. Sempre soube da importância da auto-suficiência, sempre prezei a liberdade acima de qualquer coisa, mas a verdade é que não via nenhum apelo no isolamento ou na solidão. Ou achava que não via. Em retrospecto, alguns dos momentos mais marcantes e mais saudosos da minha criação era momentos de absoluta e voluntária individualidade.

E de repente eu estava tentando entender por que eu tinha tido uma memória ativada pela simples (e, na minha cabeça, corriqueira) atitude de botar uma música para tocar enquanto tentava limpar a mente, e quando exatamente isso passou a ser tão raro na minha vida que a mais recente lembrança trazida de volta por aquela caixinha de som era de muitos anos atrás. E acho que sei a resposta.

Eu fui um adolescente muito tímido, e como é basicamente na adolescência que temos nossa primeira revisão de identidade (que é, para todos os efeitos, a única aos olhos do próprio adolescente), timidez virou uma das minhas características definidoras por muito tempo, o que hoje em dia eu sei que era uma besteira sem tamanho, porque até meus 10, 11 anos eu era um moleque espivetado cheio de amigos e absolutamente amava qualquer tipo de atenção. Pois bem, a adolescência passou, a timidez também “passou” (graças às aulas de teatro, pensava eu) e ficou por isso mesmo, eu era agora um ex-tímido convertido em ser social através de prática e treino. Mas minhas atividades intimistas – passar horas mergulhado em livros, jogando RPGs de videogame com 2 mil horas de enredo, ou no escuro ouvindo Beethoven e John Williams – eram também parte da minha identidade e sempre seriam.

E, no entanto, faz tempo que não consigo parar para ler mais do que 2 páginas de qualquer livro, não jogo RPG e provavelmente nem falo mais sobre há mais de 8 anos e ouvir música pra mim virou atividade exclusiva de deslocamentos de carro, sempre como pano de fundo para o trânsito. O que diabos aconteceu? Porque também não é como se não tivesse NENHUM tempo sobrando na vida pra um pouco de lazer, é só que de alguma forma eu sempre acabo optando por...

Oh-oh.

Acontece que lá por 1996 eu ganhei um computador do meu pai, que na época morava no Maranhão (e eu em Santa Catarina) e com quem eu estava perigosamente perto de perder completamente o contato. A solução que ele encontrou foi financiar em trocentas vezes um par de IBM Aptivas para que nós driblássemos os custos proibitivos de interurbano com a tal da Internet. E, como bônus, eu ainda tinha acesso a uma fonte virtualmente infinita de páginas da World Wide Web (que devia caber inteira no meu atual HD de 1 Terabyte). Era o paraíso de um adolescente introspectivo que adorava ler. Textos, textos everywhere! Como naquela época se navegava com incríveis modems 2.400bps (isso são BITS POR SEGUNDO, crianças. Sua banda larga atualmente, se vc for MUITO mão de vaca, opera no mínimo a 524.288bps e você ainda xinga porque leva 15 minutos pra carregar a home do UOL) que ocupavam a única linha telefônica da casa (a única mesmo, pq ninguém tinha celular) e cobravam 10 cenavos a cada 4 minutos a título de pulso, exceto entre 0h e 6h, entrar na internet durante o dia era fora de questão. E eu não podia ficar acordado depois da meia-noite pra acessar porque estudava de manhã, então eu desenvolvi o hábito de levantar 1h e meia antes do horário de me arrumar pro colégio, às CINCO E MEIA da matina, só para surfar a web. Em 1996, isso provavelmente era justificativa legal válida para minha internação, mas eu não estava nem aí, passava horas no Webcrawler (e, depois, no AltaVista; Google é coisa de piá de prédio criado a leite com pêra) caçando páginas legais para ler. A internet era tão pequena naquela época que o Yahoo! tinha a opção de listar as páginas por assunto. Não é piada.

Enfim, tudo estava se encaminhando perfeitamente, até que eu resolvi me inscrever numa lista de e-mail (isso foi antes de inventarem fóruns em PHP, e provavelmente antes de inventarem o PHP) sobre RPG, que era um grande interesse meu na época, mas que era um hobby pouco difundido e especialmente obscuro numa cidade como Florianópolis. Minha idéia era apenas buscar gente pra trocar figurinhas sobre aquele assunto em específico, mas a lista era bem mais movimentada do que eu esperava, e era muito interativa. E quase todos os assinantes se conheciam pessoalmente e tinham várias histórias para contar, muitas nem relacionadas com RPG. E um dia alguém me avisou que essa galera estava se comunicando em tempo real através do IRC, e eu resolvi ver qual era, e daí foi ladeira abaixo.

Essa época da minha vida foi a que eu considerei, por muito tempo, o desabrochar da minha socialidade. Mas na verdade era só um reencontro com minha natureza social que há anos estava reprimida. Em um ano eu já havia me decidido a sair de Floripa e ir morar no Rio, aonde a maior parte daquela turma vivia, e aonde eu já havia morado há muitos anos, mas que revisitei graças àquela turma e voltei para casa atordoado com o quanto a cidade era sociável, como todo mundo se tratava como se já se conhecesse, como eu havia sido acolhido e bem tratado por gente que acabara de me conhecer, com a quantidade de vida que existia aqui. Em dois anos, já tinha até arrumado a desculpa para vir – estudar música na UFRJ, plano que se adaptou rapidamente para estudar música na Villa-Lobos quando eu falhei espetacularmente na prova de habilidade específica do vestibular. O importante era ficar. No meu primeiro ano morando aqui, eu não parava em casa. Sempre tinha uma reunião, uma festa, um encontro da galera. Passar um fim-de-semana sequer sem sair de casa me dava a sensação de ser enterrado vivo.

Mas ei, eu ainda tinha bastante tempo para dedicar a mim mesmo, aos livros, à música, ao ócio criativo. Morava sozinho e estava realmente curtindo toda aquela coisa de aprender a gerenciar uma casa, uma economia doméstica, etc. Fora que eu estudava piano, então tempo sozinho com uma música nunca me faltava.

Só que nessa época eu também já pagava minha conta telefônica, e também fazia meus horários, e o ritual de toda santa meia-noite me conectar no IRC e ficar jogando conversa fora era sagrado. Fins de semana, que tinham pulso livre, nem se fala. E não tardou a surgirem os provedores de internet discada que não cobravam pulso, e aí, podia muito bem ter jogado fora o aparelho telefônico da minha casa, porque a linha era do computador e de mais ninguém. Quem quisesse falar comigo que me mandasse um e-mail, ou me achasse no IRC, ou no meu ICQ, que vivia bombando, por sinal. Mais ou menos nessa época, ler qualquer coisa em papel começou a ficar relegado a trajetos de ônibus e metrô, mas o resto continuava firme e forte. Eu estudava, lia, ouvia músicas, escrevia, compunha. Foi uma época de ouro pra mim, para ser melhor só se eu tivesse qualquer tipo de sustentabilidade econômica ou responsabilidade com meus estudos, mas isso é detalhe. Estava vivendo o sonho colorido de qualquer artista.

Mas aí o calo apertou, a mesada encurtou, a matrícula jubilou e eu tive que me endireitar. O tempo pra mim já não era mais tão ilimitado, mas ainda estava lá, e eu ainda conseguia conciliar isso com a interação diária com vários amigos daqui ou do outro lado do mundo, que sempre estavam ali pra puxar uma conversa. Aí eventualmente vieram as tais das redes sociais, fotolog (heh), Orkut, e de repente eu conhecia um monte de gente (olha, mãe, mais de 100 amigos!) e tinha um monte de assuntos diferentes para debater, convenientemente divididos em comunidades, e sempre tinha gente fazendo chat coletivo no MSN, e às vezes eu conseguia ouvir música enquanto batia papo, e uma ou duas vezes por mês eu lia alguma coisa, mas quase sempre eram textos técnicos porque a faculdade (agora de informática -  não perguntem) tava puxada, e eu quase não conseguia prestar atenção nas poucas aulas que freqüentava, afinal os papos sempre se estendiam até altas horas e quando eu via já estava de manhã.

Hoje eu sou casado, pai de duas crianças lindas e hiperativas, trabalho há 8 anos no mesmo tribunal, pago aluguel e contas todo santo mês, e ainda assim consigo manter um bom nível de atividade em pelo menos 3 redes sociais, mais as outras sei lá quantas que eu uso esporadicamente, to sempre conversando com todo mundo no gtalk, e isso sem nem mencionar o fucking twitter, que eu to o dia inteiro espiando sempre que sobram 10 segundos pra puxar o smartphone do bolso.

Ou seja.

A triste realidade é que a vida social matou meu tempo particular. Sim, quem diria, o moleque sem vida social agora não consegue desgrudar da mesma por 90 minutos pra ouvir um disco do começo ao fim. Eu disse 90 minutos? Se um vídeo do Youtube tem mais de 8 minutos, eu preciso marcar hora na agenda pra assistir. Muito tempo! Pensa no quanto eu terei que rolar da timeline pra me manter interado quando voltar! Alguém pode morrer nesse meio tempo e eu vou perder todas as piadas e hashtags do momento!
A bem da verdade, o pouco de cultura que eu ainda consumo, é aquela que está socialmente em voga. Eu comecei a assistir séries de TV porque muita gente que eu conheço assistia e porque eu ficaria de fora das conversas se perdesse. Filmes, hoje em dia, só achando torrent dos lançamentos que estão sendo comentados (sim, porque ir ao cinema é um hábito morto e enterrado pra quem tem filhos pequenos em casa). Por outro lado, tenho visto muito mais TV, em especial TV aberta, especificamente o que quer que esteja sendo trending topic no twitter naquele exato momento, porque é um olho na TV e outro na grande rodinha de churrasco virtual que é aquele troço. Me desconectar das pessoas para fazer qualquer coisa sozinho é um ato consciente e que requer energia. Se deixar, eu passo a vida toda surfando o zeitgeist e só parando pra escutar o chiado do silêncio em uma mp3 mal editada por puro acidente.

E, que engraçado, esse chiado é que ativou a minha memória auditiva que desencadeou todo esse insight. É o som comum a todos aqueles momentos tão distantes entre si na história, aqueles pequenos segundos após o fim de uma música em que só o barulho da fita não gravada soava nos fones de ouvido. O último segundo antes de adormecer.

Acho que vou ouvir o chiadinho novamente.