This used to be my Playground
É isso. O último castelo da minha infância se foi. Até o fim do mês, tudo o que eu vivi naquela imensa casa, tão fora de escala, tão fora do mundo que a cercava, vai estar enterrado, aplainado e tomado por uma escola. Assim, súbito, inesperado, mas não rápido o suficiente que me impeça de sofrer. Aliás, na dose certa para ser horrível.
Desde que eu me conheço por gente - antes disso, até - a casa da minha avó foi uma realidade paralela. Ficava em São José dos Campos, SP, mas nem parecia. Só muitos anos depois eu fui sequer saber como era a cidade do lado de fora dos muros de pedra. Ela era uma cidade contida em si, um mundo à parte. Imensa - a maior casa que já conheci e já visitei, sem sombra de dúvida - de paredes grossas, salas imensas, corredores e escadas mil. Havia lugares naquela casa que eu nem sequer conhecia - ainda há hoje, pelo menos um cômodo, o segundo sótão, em que eu jamais entrei. Lá, a realidade se fundia com meus sonhos de passagens secretas, túneis subterrâneos, tesouros escondidos. Lá, mais de meia centena de crianças cresceram e viveram, correndo desembestadas pelos corredores, descendo a ladeira proibida, pulando na piscina, correndo atrás dos cachorros (e vice-versa), explorando o porão do salão de festas como arqueólogos que descobrem a tumba do pai de Tutancâmon! (e era bem capaz dele estar ali, mesmo).
Lá, as vozes altas e vigorosas da família italianíssima ecoavam e retumbavam pelos cômodos. Cada natal, cada aniversário, cada pequena festa lá era um evento, com tantos parentes reunidos, todos animados, gritando, berrando, tantas crianças pulando e rindo. Passei todas as fases da vida lá. Nunca, nem quando eu morei em Salvador, eu passei mais de um ano sem botar os pés naquela casa. Ela me viu em todas as fases. Sentiu todos os meus humores, presenciou meus choros escondidos, embalou meu sono, riu da minha revolta com os mosquitos que a infestam e que me roubaram várias noites preciosas... me viu passar sonolento por lá por incontáveis domingos à noite, voltando do sítio e a caminho de São Paulo. Me ralou, escoriou, bateu e inchou cada vez que eu, criança sem freio, me arrebentava em seu chão de ardósia ou seus postes. Rachou minha cabeça com uma grade certa vez. Nem por um instante fiquei menos íntimo dela.
Conheço cada cantinho esquecido daquele lugar, e olha que existem muitos! Sei o que tem atrás de cada canteiro, embaixo de cada caixa jogada na Garagem ou no salão... conheci e brinquei com 20 mil cachorros que se revezavam vivendo lá em cada época, convivi com primos que eram quase irmãos, e sempre os reencontrei, mesmo que só de passagem, cada vez que voltei lá. Criei ódio do clima de buxixo, da fofoca velada, das intrigas familiares que eram uma faca no meu coração. Aprendi que os primos que se lascavam de bicicleta ao redor da piscina também cresceram, e eram agora os primos que saíam para sentar no boteco e jogar sinuca. Aprendi a ler - ou pelo menos aperfeiçoei a arte - no meio dos livros mais loucos que eu desenterrava da biblioteca. Criei uns duzentos clubinhos, e cada um deles durava apenas o verão... e cada um deles era sempre o que "ia dar certo".
Todas as brincadeiras de criança que eu conheço na vida, sem exceção, eu aprendi ou desenvolvi lá. A casa foi meu playground. Meu universo controlado. Minha fortaleza, e, em tempos mais recentes, meu canto preferido para me esconder do mundo. Bastava dar uma parada lá, passar uma noite ou quiçá duas, fazendo palavras-cruzadas na sala, ou jogando algum jogo dos meus tios, ou simplesmente dando oi pras pessoas e zanzando pelos ambientes. Sentindo o amor que eu deixei ali pelas paredes, que ainda está ali, e vai continuar ali mesmo quando as paredes caírem e a casa perder seu propósito. Pedaços de mim que eu depositei ali, aos quais eu podia recorrer sempre que me sentia consumido.
As pessoas dizem que eu não sei deixar as coisas irem. E é a mais pura verdade. Eu não sei. Eu escrevo essas palavras de quem sabe que tudo o que passou vai permanecer lá e aqui, dentro de mim, mas eu não consigo me enganar. No fundo, eu não estou preparado, não quero, não consigo. Fico um marmanjo de quase 25 anos com a cara retorcida e secando lágrimas que não param de cair. Eu estou preparado para perder pessoas, mas nunca para perder coisas que deviam ser eternas. Mas nada é eterno. Um dia eu vou aprender. Não é como se restassem muitas outras coisas para perder, de qualquer forma...
Com a casa da minha avó, se vai uma grande, enorme parte da minha vida. Eu queria dizer que não vou passar lá na frente para não ver no que a casa se transformou, mas meus avós estão se mudando para um prédio a menos de 100m rua abaixo. Eu vou acabar vendo. Eu vou ter que encarar e passar por cima. Mas agora, eu só consigo tentar lembrar de algum recanto da minha infância que não tenha sido levado pelo tempo ou pelo acaso. E a contagem está muito, muito baixa.
Ainda assim, de todas as coisas que eu achei que um dia perderia, aquele castelo era o que eu menos esperava. Enfim. Acho que o jeito é erguer a cabeça e tentar construir, na minha própria família, algo no mínimo tão bonito e tão inesquecível quanto aquela casa. É uma tarefa hercúlea, quase impossível. Mas é para o futuro que eu tenho que olhar agora.
Mais um lar que viverá para sempre, mas só nos meus sonhos...
Desculpem o dramalhão.
Wind
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