Cotidiano Sem Lei
Muito se falou sobre a "segunda-feira sem lei", o dia do último ataque coordenado de traficantes aos moradores do Rio de Janeiro. Milhares de pessoas enfurecidas, revoltadas, dizendo que os traficantes querem destruir o sistema, querem jogar a sociedade no caos e revogar seus direitos garantidos por lei. Entre esses direitos, o mais ameaçado seria o de transporte público regularizado, que estaria sofrendo enormes prejuízos com a quantidade de ônibus queimados e teria que parar de funcionar, deixando os cidadãos entregues à barbárie sanguinária que dirige vans e kombis por aí.
Agora, francamente, qual a diferença dos motoristas de van pros motoristas de ônibus? Quero dizer, será que esse 'transporte regularizado' é tão regularizado assim? Tomemos como exemplo a viagem que acabo de fazer. Peguei, como sempre faço, o 434 no ponto final (Grajaú) para voltar da casa do Telles e da Dri. Assim que o ônibus saiu, no primeiro sinal, uma luminosidade súbita me chamou a atenção no banco do motorista. Olhei para ver o que era, e ele estava acendendo um cigarro. Agora, eu achava que POR LEI o fumo era proibido em ônibus, o que significaria que nenhum passageiro pode fumar dentro do veículo, que dirá o motorista! Mas ainda assim ele acendeu o cigarro, e começou a bater papo com o trocador, um papo tão animado que o sinal abriu e ele só se tocou mais de 30 segundos depois, quando alguém buzinou para avisar. Aqui cabe também comentar a velocidade em que o motorista dirigia, entrando acelerado em curvas, freando em cima das faixas, etc. Isso porque supostamente o transporte coletivo regularizado é diferente do clandestino porque os motoristas são qualificados e não botam a vida do passageiro em risco. Bem, isso até pode ser verdade, das 08:00 às 22:00h. Depois disso, é fato conhecido e notório que todo motorista de ônibus alopra, pisa até o fundo e não respeita NENHUM sinal de trânsito. Mas enfim. A viagem continua.
Mais à frente o ônibus para para pegar dois passageiros no ponto. E eis que o motorista manda eles entrarem pela frente, e pagarem menos que o valor da passagem diretamente para o cobrador. "Recupera aí aquele prejuízo que você teve mais cedo", disse ele ao cobrador. Até agora, além de fumar e dirigir perigosamente, agora o motorista estava dando calote na própria empresa. E não havia percorrido nem 1 km ainda!
Mais adiante ele parou no ponto em frente ao Shopping Iguatemi para pegar um bando de motoristas em fim de expediente que pegariam carona para casa. E eis que, do nada, mais de 20 malucos invadem o ônibus pela porta da frente, numa atitude que surpreendeu inclusive o motorista. E engana-se quem pensa que eram favelados ou coisa do tipo. Todos playboyzinhos emperequitados pra ir pra Lapa. O motorista ficou sem reação alguns segundos, desligou o carro e ficou esperando alguém se manifestar. Ninguém falou nem um "ah". Aí, o motorista chamou o cobrador, perguntou que porra era aquela, e ao que parece foi o cobrador mesmo que mandou a renca entrar para dar o mesmo calote que os dois primeiros. Só que multiplicado por dez. O motorista fez cara feia, mas acabou chamando um dos caras, e mandando ele recolher grana da galera pra dar pro cobrador. Obviamente, a roleta não foi girada nenhuma vez e o cara embolsou uma grana alta!
Daí pra frente foi o básico. Velocímetro nos picos, parando fora do ponto, velhinhas tendo que viajar em pé porque tinha playboys sentados nos assentos reservados... e as infrações não se limitavam ao universo do ônibus não. Perto do sambódromo estava havendo uma festa da FM ODia, e milhões de vans de cachorro quente e trailers haviam tomado mais da metade do asfalto com cadeiras e mesas, de modo que o ônibus só passou com muita dificuldade. E havia várias viaturas ali, tanto da PM quanto da Guarda Municipal, e aparentemente ninguém viu nada. Fora pessoas paradas no meio da rua, ônibus fechando táxis que fechavam carros, enfim. Caos urbano. E o mais triste - um caos tão habitual que ninguém mais percebe ou reclama.
Então eu me pergunto: onde está a lei que os traficantes subverteram na segunda-feira? Ou estaria esse caos tão enraizado no dia-a-dia que já se toma por lei e ordem? Eu acho que o problema é muito maior, é cultural. No Rio, muito mais que em outros lugares, existe uma cultura da malandragem, do jeitinho, de um "senso comum" adotado paralelamente à lei. Blitz de PMs montadas única e exclusivamente para arrecadar dinheiro de suborno de motoristas irregulares, "regras" de trânsito alternativas que se aplicam conforme o número de carros nas ruas ou a proximidade de viaturas, cachorros na praia amarrados na frente de guardas municipais que não fazem nada, preços abusivos para turistas... tudo isso é cultural, são atos corruptos dificílimos de se expurgar, porque quem os comete está seriamente convencido de que é o correto.
Não são só os traficantes que precisam aprender a andar dentro da lei. Essa é uma lição que deveria ser transmitida a toda a população fluminense.
Wind
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