7.11.14

Estabilidade

Hoje é meu último dia de Tribunal. O fim de um ciclo que começou lá no infinitamente distante ano de 2003, meio de surpresa, no embalo de uma grande virada na minha vida que foi o diagnóstico e subsequente tratamento do meu TDAH. Aconteceu tudo meio de surpresa, de improviso. No último dia de inscrições, uma amiga me perguntou se eu iria prestar, porque era para a área de informática e a inscrição estava baratinha. Naquela época, no início da minha Fase Ritalina, eu estava fascinado com minha própria capacidade de me focar em coisas que antes eram praticamente impenetráveis para mim de tão maçantes, então em um mês entre a inscrição e a prova eu li duas apostilas dessas de banca e, para minha surpresa (e para agravar minha sensação de que eu tinha despertado um tipo de superpoder que me permitia fazer qualquer coisa) passei em primeiro lugar, e fiquei com a única vaga que estava em disputa. Mesmo não tendo nunca sido minha ambição, ou mesmo pretensão, terminei aquele ano - que havia começado no fundo do poço, abandonando a UFRJ e entregue à certeza de que eu era um vagabundo sem rumo incorrigível - como funcionário público do judiciário federal.

Anteontem, dei a canetada no formulário de pedido de exoneração. Não foi uma atitude de impulso, mas também não foi resultado de um cuidadoso planejamento ao longo dos anos para migrar do serviço público para algo mais ambicioso fora dele (coisa que eu tinha em mente nos primeiros anos, mas que foi sendo postergado até ser, finalmente, esquecido). Foi apenas como as coisas aconteceram. Diversos acontecimentos ao longo do último ano foram alterando cada vez mais as minhas perspectivas de futuro até que, no início do segundo semestre, a permanência no Rio de Janeiro ficou insustentável financeiramente, e tomamos a decisão de irmos para São Paulo, aonde as condições são suficientemente melhores para que a nossa subsistência seja garantida. Eu tive a chance de fazer uma permuta com um funcionário do TRT de São Paulo, mas apareceu uma proposta mais interessante, tanto financeira quanto profissionalmente, na iniciativa privada. Então eu fiz a opção, e foi uma opção bastante natural para mim.

O que eu não esperava, no entanto, era a reação das pessoas. Não houve um único parente, amigo ou colega que não tenha arregalado os olhos ao descobrir que eu estava me exonerando daqui. Eu já contava a novidade esperando os olhos dos interlocutores se esbugalharem, e eventualmente a boca entreabrir incredulamente. Muitos me parabenizaram pela "coragem," alguns me perguntavam um "mas por QUÊ" em tom confuso, e houve mesmo quem tenha tentado me dissuadir da idéia - em especial meu chefe, o que é até compreensível, mas nem de longe ele foi o único. Alguns me suplicaram para repensar, para tentar uma licença sem vencimentos - o que acabei fazendo, a contragosto, mas a probabilidade dela ser dada em tempo hábil era zero, então não insisti. E, afinal, não era o que eu queria. Eu queria sair, e foi o que eu fiz. E por um momento, quando assinava a papelada, me senti cometendo um crime, ou desrespeitando as crenças e os valores alheios, tamanha a resistência que a idéia teve entre todos os que me cercavam. Isso me deixou, de certa forma, triste. Mas foi só quando um colega daqui, com quem eu troco uma ou outra palavra, aproveitou que estávamos descendo juntos no elevador para - gaguejando, acreditem - me parabenizar pela coragem de ser "um dos raríssimos casos na história do Tribunal a pedir exoneração voluntariamente," que eu percebi que eu não tenho por que me sentir mal. Não estou sendo corajoso, irresponsável nem temerário. Os outros é que não entendem nada da vida.

Não quero que pensem que eu não entendo o que significa ter um emprego estável, ou que não dou valor aos benefícios que minha carreira oferece. Eu sei muito bem o que significa estar aqui, e o que significa estar trabalhando pela CLT para a iniciativa privada. Sei de muita gente próxima - bem próxima, inclusive - que vive perrengues terríveis no mercado de trabalho atualmente e que daria tudo para ter a estabilidade que eu estou, no conceito leigo de alguns, jogando fora. Mas a verdade é que, em 11 anos de Tribunal, eu não senti essa tão romantizada estabilidade que todo mundo associa ao funcionário público. Claro, eu tinha garantias que a maioria não tem - a de que eu não seria um belo dia chamado na sala do chefe para ouvir que a barca do downsizing estava passando e me levando, por exemplo. Mas no quadro geral - na vida, nas finanças, na saúde - não tive nenhuma estabilidade não. E nem poderia ter, porque estabilidade é uma utopia, um construto, um pote de ouro ao fim do hipotético arco-íris da vida diária. É uma mentira colorida feita para trazer perspectiva de conforto, muito como a fé em alguma religião da vida.

Aos 33 anos, eu hoje tenho o pleno conceito da diferença entre conhecimento e sabedoria. É fácil adquirir conhecimento, mas a sabedoria depende diretamente da experiência de vida. Quando aquele colega falou comigo que "mas de repente você também terá uma estabilidade lá na empresa, por causa das circunstâncias, né?" eu me senti conversando com uma das personagens do Mito da Caverna, de Platão, que tentava compreender o que eu iria fazer do lado de fora onde não haviam sombras perfeitamente definidas. E ele deve ser uns 20 anos mais velho do que eu, mas naquele momento, toda a falta de sabedoria dele transbordou aos olhos. E eu me senti aliviado, porque até o momento, toda a incredulidade e toda a negatividade dos outros em relação a minha decisão - mesmo dos amigos que me apoiaram, mas nunca sem deixar escapar um "tem certeza?" que demonstrasse que eles, também, não concordavam comigo em algum nível - tinha me deixado numa situação que só poderia ser explicada de duas formas: ou eu estava completamente maluco, ou todo mundo ao meu redor estava completamente desinformado. Naquele momento, tive certeza que era a segunda opção.

E não culpo ninguém por isso, realmente. Como eu disse, conhecimento é uma coisa, sabedoria é outra. Uma pessoa pode aprender muito cedo na vida que a natureza é uma coisa dinâmica, mas enquanto houver qualquer ilusão de segurança à qual ela possa se apegar, mesmo que subconscientemente, essa informação será apenas conhecimento. É só após muitos anos vivenciando as inconstâncias da vida, só depois que o tempo demole um a um todos os supostos portos seguros de uma pessoa, que o conhecimento é absorvido pela alma e vira sabedoria. Por isso idosos são tão sábios, mesmo quando não tiveram muito acesso a informação e conhecimento na vida. Porque eles detém essa vivência, que nem o mais estudioso dos jovens pode ter.

Eu tenho uma vantagem nesse aspecto. A minha vida é mais inconstante do que a média. A instabilidade não está só nos movimentos sociais, econômicos e geopolíticos ao meu redor, está dentro da minha cabeça. A vida de um TDAH é uma eterna instabilidade. É uma torrente constante de frustrações, pancadas, pequenas derrotas. Então, de certa forma, não estou abandonando estabilidade nenhuma. Pelo contrário, esse último ano foi um dos mais instáveis e malucos de minha curta-mas-não-tanto vida, e eu tive que lidar com mais momentos de chão sumindo de baixo dos pés em 11 meses do que muita gente lida a vida inteira. Estar ou não no serviço público não vai me trazer esse falso conforto de uma suposta estabilidade, porque aqui a guerra é 24/7.

Por outro lado, talvez isso seja bom. Talvez a instabilidade, a incerteza, me faça bem. Minha produtividade aqui no TRT, que era tão elogiada nos primeiros anos que passei aqui, caiu a quase zero nos últimos. Em parte porque eu me desmotivei com a falta de desafios e o ambiente tedioso, e em parte porque outras partes da minha vida solicitaram minha atenção. Antes de ser diagnosticado com TDAH, eu não era um vegetal. Eu tive um bom aproveitamento no primeiro e segundo graus escolares, eu cheguei a cursar Piano na EMVL, eu tinha minhas conquistas aqui e ali... mas eu não tinha controle sobre elas. Eu me dedicava àquilo que ativava meu foco, e um dos principais ativadores era a pressão externa. Enquanto eu morava com meus pais, a dinâmica entre eu e eles gerava essa pressão, essa cobrança, que era suficiente para me levar. Foi quando saí de casa para morar sozinho que a coisa degringolou. Estar numa situação confortável, sem cobranças imediatas, acabou com minha produtividade. Quando comecei o tratamento com a Ritalina, o remédio substituiu essa pressão e eu pude enfim direcionar meu potencial para onde eu bem entendia.

Mas eu não contava com o outro lado da moeda: depois da chegada dos filhos, a dinâmica de pressão voltou a estar presente dentro da minha casa, e sequestrou toda minha energia. Eu não precisava mais de estimulantes, eu precisava de um DESestimulante, algo que conseguisse quebrar essa atração gravitacional irresistível que a pressão dos imprevistos domésticos diários exercia na minha atenção. E por anos eu tentei de tudo, troquei inúmeras vezes de remédios tarja preta, cheguei a estar tomando 10 comprimidos por dia antes dos 30 anos, mas sem sucesso. As áreas da minha vida que não me exerciam pressão (meu emprego estável, minha faculdade quase-terminada que só dependia do meu esforço em fazer o projeto final) simplesmente não tinham como competir pelo meu tempo. Isso fez minha produtividade se deteriorar completamente e me botou em maus lençóis aqui. Claro, ainda tinha o emprego, o salário e a estabilidade, mas não era mais uma peça importante para o Tribunal já há algum tempo.

Então, não é estranho que eu esteja partindo para uma empreitada arriscada. Não tem por que perder mais tempo, dinheiro e saúde procurando um coquetel químico que emule uma solução que está na minha cara: eu preciso da instabilidade, da pressão, para voltar a ser feliz. Claro que existe o outro lado da moeda - apesar de me fazer focar, a instabilidade também me exaure. Mas mesmo trocar um problema por outro é um bom negócio, porque para isso existem outras soluções que podem funcionar melhor do que o que eu tenho hoje em dia. E, se bem me conheço, uma vez que a minha produtividade profissional volte a ser estimulada, o céu é o limite.

Então relaxem, queridos amigos. Não estou louco, nem inconsequente. Estou, na verdade, dando um passo muito bem calculado e cientificamente embasado na direção de uma melhora de saúde, de humor e de vida. Só parece meio doido para vocês porque vocês ainda são apegados a noções abstratas de segurança e conforto, mas eu já descobri que segurança e conforto são contos de fadas, e que a vida é essa coisa fluida, dinâmica, e instável por natureza (tanto que a única coisa definitva que existe é justamente a morte). Não me entendam mal, não critico ninguém por valorizar a calmaria. Mas a vida vem em ondas, já diria o profeta, e eu prefiro surfar a me agarrar a uma bóia.

E vamos lá rumo à vida nova!

11.2.14

CARTA ÀQUELES QUE CONCORDAM E SE SENTEM REPRESENTADOS PELOS IDEAIS DE RACHEL SHEHERAZADE

Olá. Não nos conhecemos, mas gostaria de me apresentar. Meu nome é Rafael, tenho 33 anos, casado, pai de 2 filhos, funcionário público federal. Pago meus impostos em dia. Não sou nem nunca fui filiado a nenhum partido político, mas me considero um esquerdista (pelo menos na concepção de 20 anos atrás, não sei o que se entende por esquerdista hoje.) Nas 3 eleições presidenciais que vivi em condições de votar, votei em Lula e Dilma. Não sei em quem vou votar esse ano porque o governo atual, a despeito do que fez de positivo, se distanciou demais da minha visão política para continuar recebendo meu subsídio simbólico. Digo "simbólico" porque eu, na minha combinação incomum de formação filosófica/condição socioeconômica, jamais farei parte de um grupo homogêneo grande o bastante para ter peso em eleições. Sou a eterna minoria, e já me acostumei a isso. Mas ainda assim, cumpro meus deveres cívicos.

Como vocês já devem ter deduzido, eu sou radicalmente contra o discurso do "bandido bom é bandido morto," sou defensor ferrenho dos Direitos Humanos, não acredito em violência como resposta para nada e muito menos na existência da instituição "cidadão de bem."

Ao contrário do que vocês devem ter imaginado, não sou Marxista, Stalinista, comunista, socialista, nem pratico qualquer outro "ismo" político. Não sou contra a propriedade privada nem a favor da anarquia. Não sou Black Bloc, não sou do Anonymous, não vandalizo símbolos do capitalismo e DEFINITIVAMENTE não atiro rojões contra policiais ou jornalistas. Na verdade, abomino essas coisas tanto quanto vocês.

Por que estou escrevendo para vocês, membros da sociedade que a esquerda ativista tão facilmente joga na vala comum dos rótulos de "coxinha" e "reaça," se discordo de tudo o que vocês pensam?

Porque quero ser amigo de vocês.

É meu entendimento que estamos num momento delicadíssimo no país, e ninguém está fazendo nada para conciliar as partes. Tudo o que eu vejo na mídia, nas redes sociais, no papo de elevador, é gente jogando pra própria platéia. O debate político no país ficou em coma por muitos anos, mas agora que voltou parece que todo mundo só está interessado em gritar, rosnar, enfiar seus ideais goela abaixo dos discordantes, ou pior: nem faz questão de explicar seus pontos de vista, apenas ironiza e hostiliza as opiniões contrárias e trata quem as têm como um inimigo. A ficha caiu assistindo a um vídeo gravado no domingo, onde jornalistas tentavam entrevistar três manifestantes que chegavam à delegacia para se inteirar do caso do cinegrafista Santiago Andrade. No vídeo fica claro que os dois grupos já começam a interagir na ofensiva, trocam farpas desnecessárias, e no ponto culminante do vídeo, um dos ativistas diz a um cinegrafista que "espera que ele seja o próximo" (a levar um rojão na cara), ao que o cinegrafista simplesmente golpeia a cabeça do menino com a câmera. É um show de horrores, de bile, de intolerância, e é uma situação absurda que não favorece ninguém. Os dois estavam errados, e os dois estavam calçados em justificativas emocionais genuínas para suas reações. Mas justificativas emocionais não valem de nada em sociedade. Somos seres racionais, e estamos deixando de nos comportar de acordo por causa de uma crescente histeria coletiva.

Então estou tomando a iniciativa de sair da comodidade de apenas repercutir idéias que corroboram com as minhas para meus amigos (que felizmente pensam como eu em questões fundamentais, ou dificilmente seriam meus amigos) e de expôr ao ridículo os pensamentos contrários - sabendo que assim, quem os tem também se sente ridicularizado e atingido. Estou estendendo a mão e oferecendo uma trégua, e tudo o que peço é que leiam desarmados - e que, sobretudo, não se sintam paternalizados. E nem se sintam corrigidos, porque eu não acho que vocês estejam errados. Dentro do universo de argumentos que compõem a filosofia do olho-por-olho, dente-por-dente, vocês estão certos.

Mas estar certo não significa estar correto. Parece estranho, mas deveria ser óbvio. Ninguém considera a própria opinião errada, e mesmo assim existem opiniões divergentes no planeta. Então, o que diferencia o certo do correto? Pra começar, o correto é um estado utópico e inalcançável, mas nossas certezas podem estar mais ou menos próximas do correto. E, na maioria das vezes, isso depende diretamente da quantidade de informações sobre um fato que cada um possui. Muitas pessoas que têm opiniões diferentes sobre o mesmo assunto, na verdade, pensam da mesma forma e têm os mesmos valores. O que muda é a quantidade de informação em que a opinião se baseia. Então, você pode estar certíssimo em seu ideal baseado em 3 ou 4 fatos que servem para alimentar sua opinião, porém outros 5 fatos que você desconhece mudariam a equação para um resultado radicalmente diferente.

Então eu venho aqui tentar explicar, bem didaticamente, os motivos que me levam a acreditar que vocês têm uma visão muito incorreta dos problemas que povoam a nossa realidade cotidiana e suas possíveis soluções.

Vou começar dizendo que é natural e normal pensar assim. Na verdade, é instintivo. A revolta, a agressividade, a reatividade são elementos fundamentais do ser humano e de quase todos os seres vivos. Sempre que nos deparamos com a violência, a agressividade alheia, temos o mesmo instinto de nossos ancestrais: defender nosso território e nossas vidas. Na natureza, a única forma de fazer isso é o conflito, e portanto somos moldados e chaveados para querer o conflito quando nos sentimos ameaçados. Com essa estrutura psicológica pura, e munido apenas das informações que se forçam às nossas percepções (é impossível ignorar a violência quando todo dia ela está estampada nas nossas caras, isso quando não aparece pessoalmente para nos assombrar), não existe outra resposta que não a da defesa, na necessidade de extirpar a força agressora. Nesse estado de coisas, isso é mais do que o certo, é o natural.

Mas nós não somos apenas animais. Nós somos racionais. Nós temos linguagem, organização, raciocínio. Todas essas dádivas nos separaram dos demais animais e nos deram a chance de escolhermos como nos organizarmos socialmente de forma otimizada para a espécie (ao contrário de, por exemplo, abelhas e formigas, cuja organização social, apesar de sofisticada, é aquela que está impressa no DNA e só). Em especial, a capacidade de transmitir nossas experiências através das gerações nos faz com que sejamos um grande organismo coletivo cujo tamanho, complexidade e capacidade vem crescendo continuamente por milhares de anos, em ritmo acelerado. Através desse tempo, enfrentamos muitas dificuldades, e a principal é justamente a eterna presença dos instintos primitivos que volta e meia reclamam alguns anos de progresso da nossa espécie.

Por estarem conosco desde os mais distantes antepassados, esses instintos não são novidade para ninguém. Os mais antigos pensadores registrados na História já as conheciam, já as viam como obstáculos ao refinamento da espécie, e já propunham mecanismos que minimizassem o impacto desses instintos na organização social, para que todos prosperássemos juntos.

Mas se fosse fácil negar o instinto, o problema já estaria resolvido desde Aristóteles. Não é, e não está. Por mais rápida que seja a evolução tecnológica da humanidade, a evolução biológica é um processo infinitamente mais lento. Por isso a história é recheada de exemplos de comportamentos primitivos - instintos, hormônios, mentalidade de massa, etc. - causando grandes danos e dolorosas involuções na organização social. É como se alguém tentasse montar um castelo de cartas durante uma crise incurável de soluços. É um ciclo eterno de construção, demolição, reconstrução com bases mais sólidas, demolição, reconstrução com bases ainda mais sólidas... e, claro, de tentar se prevenir contra o próximo soluço evolutivo. As causas são as mesmas desde sempre, então por que somos incapazes de evitá-las?

Porque nossa memória é curta, e porque o trauma de um desabamento vai diminuindo conforme ele vai ficando para trás. O trauma é um dispositivo importante no ser humano, porque ele age diretamente no instinto, inibindo a nossa reincidência em erros que têm consequências catastróficas. Mas quando ele passa, mesmo que o registro do ocorrido persista, ele não tem mais efeito fisiológico, apenas racional. E aí, historicamente, é uma questão de tempo até o homem primitivo sabotar o homem racional.

A única forma de combater esse ciclo é tentar racionalizar. E socialmente falando, isso é feito repassando a história, educando a nossa prole a bloquear esses instintos autodestrutivos desde pequenos, para que eles não se somem ao movimento retrógrado que carregamos como uma âncora.

Por que eu digo isso tudo? Porque estamos vivendo um momento que se parece perigosamente com o início de uma queda-livre social que vai destruir muita coisa que construímos. Porque opiniões baseadas unicamente em uma resposta visceral ao sentimento de impotência, opressão e exclusão que sentimos estão ganhando força, ecoando cada vez mais alto. E todas - TODAS - as vezes que isso aconteceu na história, e foram muitas, todo mundo perdeu. A idade média, as grandes guerras, a ditadura militar no Brasil, todos esses foram momentos da história em que viramos mais animais e menos humanos, e a sociedade organizada involuiu como consequência. É sempre por causa desse sentimento, seja ele artificialmente alimentado ou não (e acreditem, quase sempre é), que nós perdemos liberdades, direitos, vidas. Não porque pessoas erradas tiveram vontades erradas, mas porque pessoas que não viveram o trauma na pele e nem têm memória do passado agiram sobre seus instintos primitivos, com paixão e certeza.

A mesma paixão e certeza com que vocês agora aplaudem o que a Rachel Sheherazade diz. Porque é libertador, é catártico, libertar a fera. É um alívio descomunal parar de se esforçar para afogar a agressividade, a animosidade, aquilo tudo que mora dentro das nossas veias, em nome de uma sociedade que não dá em troca aquilo que nós merecemos pelo esforço.

Inclusive, é exatamente isso que acontece na mente e no fígado dos assaltantes, homicidas, criminosos, desses bandidos todos. Só que o ponto de ebulição deles foi antes, e com algum outro catalisador que era menos loirinho, menos articulado, e menos visível nacionalmente do que a jornalista Rachel Sheherazade. E a dívida da sociedade para com eles é bem maior.

Se algum de vocês chegou até aqui, talvez tenham torcido o nariz agora e pensado "Ah, pronto, lá vai ele defender bandido." Não vou defender bandido - embora esse termo seja muito infeliz, já que grandes personalidades históricas e até religiosas que nós temos como parágonos da justiça e virtude tenham sido bandidos, às vezes condenados e presos a postes (ou cruzes) para esperar a morte. Estou apenas dizendo que somos todos iguais. Todos nós, do meu lado, do seu, do lado dos "vagabundos," todos temos a mesma responsabilidade de conter o instinto primitivo para podermos usufruir da vida em sociedade - que, pra piorar, nem é facultativa. E sem o trauma para nos dar uma injeção de adrenalina e nos avisar que estamos todos caminhando para um retrocesso abismal, é fácil sentir que não estamos fazendo um bom negócio.

Se vocês que estão inteiramente inseridos e beneficiados pela sociedade (e antes que alguém ouse pensar que não precisa ou não se encaixa na sociedade vigente, responda se você construiu sua própria casa, caçou ou plantou sua própria comida, talhou seus próprios utensílios e nunca, JAMAIS, utilizou moeda corrente de qualquer sistema financeiro existente no mundo. Se a resposta não foi sim para todas as perguntas, você está inseridíssimo na sociedade, inclusive na parte privilegiada) se sentem assim, imaginem como seria viver à margem da mesma. A mesma responsabilidade de ser racional e correto, em prol de uma sociedade que largamente te ignora, e que constantemente esfrega na sua cara que tem gente se dando muito melhor do que você sem fazer um milésimo do esforço. Quantos de vocês hesitariam em mandar os outros para o inferno e defender o seu?

A julgar pela atitude que transpira nas declarações de vocês, a resposta é zero.

Então compreendam que ser contra esse discurso não é defender "bandido" em prol de "cidadão de bem," é meramente ter uma visão maior das coisas e entender que vocês e os bandidos estão no mesmo barco, do mesmo lado, e tendo a mesma reação diante das adversidades. Estão sendo igualmente humanos, demasiadamente humanos.

Só que nós aqui desse lado (a maioria, porque tem muita gente que defende ideais progressistas mas reage da mesmíssima forma que os "reaças," inclusive foi o que mais rolou nos protestos de rua, para meu profundo desapontamento. Totalitarismo é totalitarismo independente da bandeira que se empunha - ou da falta de bandeira que se impõe a outrem) também temos um olho na história, reconhecemos os sinais sociais de um colapso social despontando no horizonte, e tentamos evitá-lo a todo custo. Porque se atualmente está ruim, a alternativa é bem pior. Sempre é.

Vocês reclamam que estamos sendo patrulhadores, censores, que estamos cerceando seus direitos de autodefesa e de proteção do seu status e estilo de vida, mas a verdade é que nós não lutamos contra nenhum direito, apenas a favor do direito de todos. O único "direito" que nós negamos a vocês é o "direito" de legislar sobre a vida alheia, e uso aspas aqui porque isso não é direito de ninguém em nenhuma escola filosófica do planeta. O direito de cada um acaba quando começa o do outro. Parece batido, porque é. É uma verdade universal e fundamental, é o pilar da sociedade da nossa espécie, e sem ela, viramos animais.

A sociedade atual é violenta porque é desigual. Porque não há igualdade de direitos, não há igualdade de oportunidades, e não há igualdade de tratamento. O ônus do direito à propriedade privada é estar sempre à mercê dos efeitos do desequilíbrio. Quanto mais a balança do privilégio pesa para um grupo de membros da sociedade, menos o outro grupo se interessa em se manter incluído. Defender o seu privilégio é defender um estado de perpétua desigualdade, que por sua vez gera uma violência sem fim. Não existe justificativa moral, ética ou estrutural para a desigualdade. A idéia de que existe um "bandido" malvadão e uma "gente de bem" que faz tudo de acordo com as regras e vive confortavelmente porque foi um ser humano exemplar é uma falácia grosseira, mas é cômoda porque assim a consciência de quem está mais preocupado com seu individual do que com o coletivo não pesa quando algum desfavorecido pede trocado no sinal, ou leva seu relógio de marca.

O problema é que, se deixada sem supervisão, ela vai nos levar, a todos, de volta à pré-história.

É isso. Essa é a essência do que nos coloca de lados opostos nessa briga-de-torcida que virou a política no Brasil. Não somos inimigos nem queremos tirar o que é de vocês por direito. Só pedimos que entendam que, no fim das contas, a sua propriedade é que fomenta a violência que tenta tirá-la de você. E que responder isso com mais violência pode parecer certo nas suas glândulas, mas só vai causar mais e mais dano, até que ninguém tenha mais nada.

Por favor, considerem com carinho.

Abs,
Rafael

20.6.13

A REVOLUÇÃO VIRAL - Como um grupo cultural previamente tido como irrisório mudou a balança política do país da noite para o dia

Tem sido impossível desgrudar da TV e da internet na última semana. E, por incrível que pareça, não é por causa da Copa das Confederações, que tem sido vendida como um ensaio geral para a Copa do Mundo de 2014. Ao contrário do que até o mais insano dos insanos poderia prever, os últimos dias viram a eclosão de um movimento político popular como o país não via há mais de 20 anos, bem no meio de uma edição de gala, em solo nacional, de um evento esportivo que o senso comum sempre ditou ser um grande alienador das massas. De lá para cá, tenho lido e assistido inúmeras análises, opiniões, palpites, até mesmo os bons e velhos "chutes" por parte de toda sorte de cientistas políticos, catedráticos, medalhões da mídia, etc. Tenho visto todas as esferas de poder, de todos os partidos, apavorados como se estivessem saindo do banho e encontrassem um urso feroz e faminto no meio do banheiro, no caminho da porta. Atordoados, eles tiveram que rever suas agendas políticas no susto sem nem ao menos entender como um urso daquele tamanho passou pela porta sem que eles notassem. A grande diversão da minha vida nos últimos dias tem sido imaginar o teor das reuniões de cúpula emergenciais que foram convocadas do Oiapoque ao Chuí. E mesmo agora, que a reivindicação inicial da turba foi atendida com um misto de contragosto e derrota pelos governantes das principais metrópoles do Brasil, ninguém ainda conseguiu entender a essência do movimento.

Bem, eu não sou cientista político, nem filósofo, e muito menos catedrático. Mas eu sou um integrante do que provavelmente foi o elemento chave que inverteu a ordem das coisas, um grupo cultural que até semana passada eu nem tinha real compreensão de que fazia parte, ou sequer que existia. Mas daqui de dentro, enxergo muitas peças que se encaixam perfeitamente e completam o quebra-cabeça que tem tirado o sono dos analistas políticos, e por isso acho que vale a pena tentar esclarecer e enriquecer o debate.

Para começar a explicação, vamos resgatar um termo que já saiu de moda, mas que curiosamente se encaixa melhor para explicar os eventos atuais do que qualquer jargão que surgiu desde então: Cibercultura. De acordo com a Wikipedia, o termo "[t]em vários sentidos mas se pode entender como a forma sociocultural que advém de uma relação de trocas entre a sociedade, a cultura e as novas tecnologias de base micro-eletrônicas surgidas na década de 70, graças à convergência das telecomunicações com a informática." O mesmo artigo diz que a Cibercultura não é uma cultura nova, mas sim o casamento da cultura pós-moderna com os canais de comunicação da era digital. Nisso, entretanto, eu discordo. Nos meus 17 anos de Internet, tendo vivenciado todas as formas de comunicação vigentes no período, desde a USENET até as Redes Sociais (a minha primeira foi o Friendster, e de lá pra cá estive em praticamente todas as relevantes), posso afirmar que, quanto mais tempo se passa interagindo socialmente online, mais se adquire características culturais próprias da rede. A facilidade de comunicação entre diversos povos e culturas foi se refinando numa "supercultura" que herda elementos de todos os participantes, mas que também adquire características bem definidas e, justamente por estar ainda em sua infância, praticamente desconhecidas de quem não tem contato com ela.

Conforme aumenta o número de pessoas conectadas no mundo, e conforme novos setores socioculturais anteriormente desconectados são integrados à internet, esse caldo cultural vai engrossando, se destacando mais da cultura local geográfica e social de cada um dos seus membros. Quanto mais tempo de contato com essa cibercultura uma pessoa tem, mais a cibercultura toma precedência sobre os traços culturais "offline," fazendo com que pessoas de diferentes países, diferentes criações, bandeiras, organizações sociais e políticas, passem a ter valores muito parecidos, a ter seus sensos de humor, de dever e de justiça  sintonizados, criando efetivamente uma classe global de indivíduos capazes de dialogar fluentemente entre si.

A maior característica dessa supracultura, de acordo com minhas observações dela ao longo dos anos, são: uma alta apreciação pela colaboratividade (herdada da cultura hacker dos pioneiros da internet), um senso crítico muito apurado (por vezes, até exagerado), um grande imediatismo (que vem do próprio imediatismo da comunicação através da rede), e uma exemplar tolerância a diferenças. Talvez por ser uma cultura colaborativa, aonde os consensos são efêmeros e muito raros, a geração - e uso esse termo muito livremente, uma vez que não existe faixa etária definita para a cibercultura, sua adesão estando ligada mais ao tempo de contato que o indivíduo teve com o coletivo online do que ao seu tempo de vida - não tem bandeiras e causas como as culturas do modelo geopolítico "clássico" costumam ter. Ao invés disso, a cibercultura acredita em iniciativa própria e a análise atomizada das questões propostas, algo que remete às democracias de vilarejos, aonde as assembléias eram constituídas pelos próprios cidadãos e cada um representava a si mesmo. Mas, ao contrário do regime democrático, cada cidadão na internet é seu próprio poder executivo. Isso significa duas coisas importantes para a análise dos acontecimentos dos últimos dias:

1. A cibercultura gira ao redor da idéia, não de um grupo representativo. Isso significa que pessoas com ideais diversos podem muito facilmente se reunir para apoiar e agir sobre uma idéia em comum que seja proposta, tão facilmente quanto discordam diametralmente em algum outro assunto; e

2. A ação na cibercultura não depende de aprovação majoritária, sendo que cada idéia ou proposta pode ser adotada por um grupo de simpatizantes que se unem para executá-la. Não existe restritividade na cibercultura, o que não significa que grupos minoritários não possam ser anulados pela ação de grupos majoritários. Mas é, de qualquer forma, uma questão de proatividade de todas as partes envolvidas.

Tendo estabelecido essas características fundamentais da cibercultura, é fácil de entender que a politização nesse ambiente cultural é um exercício diário e difuso, e o próprio ato de se expressar, nesse ambiente, é um ato politizado. No entanto, nos ambientes políticos do mundo físico, os conceitos da cibercultura encontram basicamente zero representatividade. Inclusive por serem conceitos antagônicos à própria democracia representativa; é inconcebível para alguém dessa nova cultura ter que escolher um representante que replique seus ideais com 100% de acuidade numa assembléia legislativa, e ainda mais inconcebível que só se possa fazer ajustes nessa representatividade a cada 4 anos. 4 anos é um eon no universo virtual. O próprio panorama sociocultural da internet muda drasticamente em 4 anos. A mudança de postura, a adaptabilidade, a proatividade que são essenciais à alma política de um "cibercidadão" são incompatíveis com basicamente todos os sistemas políticos existentes atualmente. Por isso, a despeito de ser extremamente politizado em sua essência, o cibercidadão se coloca como apolitizado para o sistema físico, que é um sistema que não o compreende, não o representa e nem o favorece.

Exatamente por esse motivo, a força política real desse grupo nunca foi testada ou medida até recentemente. Tanto porque a política externa à Rede não os enxerga (pois estão fisicamente pulverizados entre diversas camadas sociais e localizações geográficas), quanto porque eles, mesmos, ainda não têm uma identidade cultural sólida - prova disso sendo a incrível dificuldade que estou tendo nesse mesmo texto para classificá-los sem um rótulo apropriado, terminando por apelar para o horrendo "cibercidadão" ali em cima, mas como eu sou só um leigo opinando, é o que tem pra hoje.

Então, como exatamente um grupo sem identidade, sem autoconsciência e sem nenhuma representatividade foi o responsável por um terremoto social de enormes proporções que deixou o status quo de cabelo em pé e até mesmo os movimentos políticos estabelecidos sem entender nada do que está acontecendo?

A resposta está na análise de duas manifestações que são marcas registradas da cibercultura e que, essas sim, já são catalogadas e têm jargões próprios, facilitando o meu discurso: crowdsourcing e divulgação viral

Crowdsourcing (e seu derivado crowdfunding) é a formalização da característica apontada ali em cima de como o poder executivo na internet emana dos próprios cidadãos. Crowdsourcing é a proposta de um projeto que pode ser adotado e desenvolvido coletivamente por um grupo de interessados; Similarmente, crowdfunding é a proposta de um projeto que precisa de financiamento para ser executado e todos os interessados podem contribuir economicamente. Esses dois conceitos, particularmente o segundo, estão promovendo uma espécie de renascença industrial atualmente, à medida que eliminam o intermediário entre produtor e consumidor e invertem o fluxo da atividade econômica, que passa de "financiador -> produtor -> consumidor -> retorno ao financiador", para o mais elegante "consumidor -> produtor -> retorno ao consumidor." Projetos que não conseguem apoio suficiente para se financiar nem saem do papel, e os projetos que são executados já têm seu retorno de investimento quitado ao sair da porta. Além disso, note que o dinheiro e a iniciativa passam do privado (um financiador) ao público, o que não só elimina o intermediário como extirpa do mesmo o controle de decisão, colocando o consumidor no comando.

Divulgação viral, por outro lado, é menos uma ciência e mais um fenômeno catalogado, pelo menos por enquanto. Ocorre quando alguma coisa "atinge um nervo" da coletividade cultural e subitamente é compartilhada por milhões de pessoas voluntariamente. Numa mídia que tem poucos canais centrais de comunicação (e onde, por enquanto, esses canais ainda vivem pelos preceitos da neutralidade), a comunicação viral é a única que consegue fazer uma imagem, vídeo, texto ou idéia atingir o maior número de pessoas em relativamente pouco tempo, tendo um alcance semelhante ou maior que o dos canais midiáticos tradicionais, como televisão e periódicos impressos. O pequeno e essencial detalhe é que a divulgação viral acontece espontaneamente, e de alguma forma tentativas conscientes de usar esse canal de divulgação quase sempre naufragam, além de serem tidos como deselegantes na cibercultura. Desde que foi constatada, a divulgação viral virou a bala de prata do marketing mundial - quem for capaz de viralizar uma mensagem com sucesso terá o mundo nas mãos, já que divulgação viral, além de globalmente abrangente, também é essencialmente gratuita. Porém, mesmo os mais bem sucedidos casos de marketing viral proposital não se comparam ao poder de uma divulgação viral espontânea. Provavelmente porque a espontaneidade é a essência da viralização, e não existe forma eficiente de simular espontaneidade. E mesmo quando uma ação de marketing viral consegue enganar num primeiro momento, invariavelmente sua autenticidade vem a tona, e nada é mais ultrajante aos cibercidadãos do que uma tentativa camuflada de simular espontaneidade. É um tiro no pé que já derrubou vários marqueteiros aventureiros e que hoje em dia é amplamente visto como algo a não se fazer jamais.

E afinal, o leitor que sobreviveu até aqui se pergunta, o que isso tudo tem a ver com as manifestações que estão no tema do texto mas até agora nem deram sinal?

Aguentem um pouco enquanto eu faço uma breve recapitulação do momento político no país. Nos últimos 10 anos, depois de uma grande mudança de mãos no poder federal, o Brasil viveu um período particularmente ruim para o pensamento político. Quando antes haviam situação e oposição bem definidas e com suas próprias bandeiras, agora a esquerda supostamente estava no poder, a direita supostamente estava fazendo oposição, e a nova esquerda ficou para os partidos que antes eram considerados "extrema esquerda," com filosofias amplamente engessadas. Naquele momento, sentia-se coletivamente no país que alguma coisa havia mudado por força do voto popular (e havia). Porém, de lá para cá, a política brasileira parece ter se concentrado unica e exclusivamente na maioria dos votantes, que é o que ganha eleições, mas em detrimento de minorias que jamais serão representadas no voto mas que convivem e são sujeitas às políticas públicas da mesma maneira que as maiorias. Os membros da cibercultura - que por sinal aumentou incrivelmente de tamanho no Brasil nesse período, em grande parte graças à política de inclusão digital do próprio governo federal - se tornaram cada vez mais distantes da realidade política do país, não se reconhecendo mais em nenhuma bandeira de nenhum partido, e possivelmente nem no sistema democrático representativo, que começou a nos parecer ineficiente e impraticável para as dimensões do país. Ao mesmo tempo em que ganhamos liberdade de expressão, de criação e de consumo no mundo virtual, fomos vendo o cenário político do país ficar mais e mais abandonado por mentes progressistas e entregue às massas votantes. Dessa situação resultou um cenário político em que concessões mais e mais estapafúrdias eram feitas para agradar os setores mais populosos da sociedade, o que não teria problema não fosse o detrimento das liberdades pessoais das minorias, que agora estão sendo usadas como moeda política eleitoreira. Isso gerou grande insatisfação nessas minorias, e boa parte delas se uniu em movimentos sociais para tentar preservar seus direitos.

Paralelamente a isso, o advento das Copas da FIFA e dos Jogos Olímpicos criou um ambiente de oba-oba entre setores econômicos que, corrompendo os representantes políticos do país (alguns muito facilmente), conseguiram criar situações de lucros exorbitantes para si próprias, muitas vezes ilegais. Indícios e provas de irregularidades não faltavam, e alguns partidos que sempre se mobilizaram nas ruas começaram a se juntar na tentativa de pressionar o poder através de manifestações populares, que ganhavam força, mas não faziam nem cócegas no establishment.

Enquanto isso, toda uma cultura invisível se mantinha à margem da situação, apolitizada mas diretamente prejudicada pelos problemas do país, indignada mas apática. Talvez seja porque os indicadores e quantificadores das redes sejam tão nebulosos. As métricas para calcular o alcance das mídias sociais são ineficientes, os números podem ser facilmente maquiados, e, francamente, é de conhecimento de todos que o acesso à internet, especialmente acesso amplo e irrestrito por tempo suficiente para uma contaminação pessoal por parte da cibercultura, é coisa para poucos. Uma minoria. E se outras minorias não estavam conseguindo resultado mesmo fazendo bastante barulho, por que uma cultura que se afastara tanto do cenário conseguiria? Especialmente uma cultura sem identidade cultural forte - como descrito acima, cada idéia é atomicamente assimilada, criticada, compartilhada. Participação política tradicional é alienígena e obsoleta ao cibercidadão.

Mas eis que aconteceu algo que ninguém esperava. Uma causa se viralizou.

A bandeira do MPL não é nova - o movimento existe há anos, - o direito do MPL de ir às ruas protestar está petrificado na Constituição Nacional, a causa é nobre, mas fazia pouca diferença para cibercidadãos. Causas políticas assim são compartilhadas diariamente pelas redes sociais e normalmente comovem os mesmos grupos de ativistas. Havia, sim, uma crescente indignação com a política espetaculosa e desrespeitosa que estava marginalizando mais e mais setores da sociedade e focando apenas nas maiorias eleitorais, mas a tampa da panela de pressão ainda estava no lugar, começando a apitar.

E então, as redes sociais explodiram em compartilhamentos e vídeos de brutalidade policial. Não aquela a que já nos anestesiamos, contra pobres e "bandidos," mas uma violência descabida, desenfreada, descontrolada, que atingiu jovens manifestantes, transeuntes, repórteres, e quem mais quisesse. Não era um vídeo, não eram dois vídeos. Eram dezenas de vídeos, centenas de relatos, de pessoas das mais variadas, todas descrevendo o mesmo abuso autoritário do governo que deveria ser democrático.

Ao mesmo tempo em que esse cenário se delineava claro como água nas redes sociais, a mídia televisiva e jornalística insistia numa linha editorial claramente mentirosa e manipulativa, ditada por diretores totalmente desconectados do fluxo de informação da geração cibernética, ainda alheios ao tamanho e ao alcance dos mesmos. Por dois dias, a internet contava uma história, com clareza pristina de detalhes, e a televisão contava outra totalmente diferente. Era impossível não ver. Era impossível não se revoltar. Policiais espancando estudantes é uma situação muito delicada e que fala diretametne à memória emotiva recente da nação. Então, da mesma forma que um grupo de cibercidadãos às vezes se reúne para pagar milhões de dólares em férias para uma senhora qualquer que sofreu bullying por parte dos alunos do ônibus escolar que fiscalizava, houve uma comoção para reagir ao bullying do estado nos meninos que estavam ali exercendo um direito fundamental de se manifestar.

De repente, a idéia de descer pra rua e olhar para a cara dos policiais e dizer "e aí, vai bater na gente agora?" conectou pessoas de diferentes idades, diferentes estados, diferentes formações e opiniões. Todos unidos em torno da idéia de que governar na base do cacetete é inaceitável.

E então, de uma hora para a outra, havia 200 mil pessoas na rua em todo o país.

E, surpreendentemente até para quem estava ali na rua, descobriu-se que os cibercidadãos marginalizados pelo sistema político do país eram mais do que números no Google Analytics, mais do que quantidades de likes. Era GENTE PRA CACETE. Tanta gente, que ninguém conseguiu entender de onde havia saído. Governantes e a velha mídia olhavam pela janela e viam uma quantidade de cabeças que, da última vez que eles tinham visto, derrubaram regimes. Claro, eles não tinham como saber que aquela gente ali toda jamais concordaria sequer em se prefere pipoca doce ou salgada, que dirá com agendas políticas extensas. Estavam todos ali pra ajudar os moleques que apanharam. Pra estabelecer que as ruas são públicas. E mais nada. Era mais um flashmob do que uma manifestação propriamente dita

Mas esses conceitos modernos fogem à compreensão da classe política brasileira, e por vários dias, o que vimos (de minha parte, com muito prazer) foi políticos, cientistas, repórteres, todos batendo cabeça, como baratas tontas, procurando um líder, uma agenda, um insuflador, algum elemento familiar que os ajudasse a lidar com aquela surrealidade toda. Não encontraram. Mas, no pânico, as grandes emissoras deram uma cambalhota e imediatamente reverteram seus discursos editoriais em favor do povo nas ruas, considerando-os a nova "situação." E então, abandonados e apavorados, os políticos cederam ao menos a causa do MPL, em coletivas simultâneas, ensaiadinhas, borrando-se de medo.

O que aconteceu de lá para cá com esse movimento-que-jamais-foi é, tintim por tintim, a vida útil de um meme (termo coloquialmente utilizado para descrever termos, jargões ou cenas que se viralizam na internet). Numa consequência newtoniana, a massa de pessoas nas ruas no dia 16 criou uma força gravitacional irresistível, que por sua vez atraiu todos os outros movimentos sociais, de TODAS as orientações, desesperados por não estarem juntos na boquinha. Até o MPL venceu a causa mas também não compreendeu a motivação nem a origem do reforço que recebeu, e passou a querer nortear o movimento maior por suas próprias pautas. Assim como marqueteiros tentando criar ações virais, as ruas agora estão lotadas de insufladores e líderes de movimentos tentando viralizar uma nova causa. Quem sabe o que acontece com um meme velho na internet sabe que isso não tem futuro. A manifestação nas ruas é aquela piada que já perdeu a graça (sempre rápido demais, característica da cibercultura) mas que vai passar as próximas semanas no topo dos trending topics enquanto todo tipo de setor da sociedade tenta manter a chama viva para tentar comandá-la para algum lugar. No fim das contas, ainda tem muita gente nas ruas, mas são essencialmente as pessoas que já iam às ruas antes, em datas diferentes, com agendas diferentes. Imagino quanto tempo mais esses movimentos tão opostos vão suportar gritar palavras de ordem em uníssono, mas arrisco que muito pouco.

Por outro lado, não foi um dia menos importante ou menos histórico pela falta de uma causa maior. Pelo contrário. Vivenciamos a materialização da política como ela é praticada diariamente na internet, só que dessa vez nas ruas. Olhamos para os lados e subitamente conseguíamos enxergar o rosto de todos aqueles likes e compartilhamentos e RTs que vemos discretamente representados diariamente nas redes sociais. A cibercultura se colocou no mapa das culturas, meio sem querer, mas agora que abrimos precedente, quem há de dizer que não estaremos menos desmotivados a expressarmos nossos ideais na rua, ao lado dos movimentos sociais que estiverem com a razão naquela questão, naquele momento? Podemos nos sentir solitários no dia-a-dia, convivendo com pessoas que não compreendem nossos valores e nossa cultura, mas se todo mundo descer o elevador ao mesmo tempo, lotamos a rua, estremecemos a mídia e até dobramos governos. É como descobrir um superpoder latente, mesmo sem saber ainda como controlá-lo. Pelo menos, agora sabemos que temos.

Nesse momento, vejo muita gente frustrada por ter visto tanta gente na rua, com tantas insatisfações, e isso não ter dado em nada além de uma dissolução inevitável do momento. Eu digo que não se frustrem. Pelo contrário, se orgulhem. E tenham boas esperanças de voltar a serem cidadãos offline, porque com essa visibilidade, com essa noção de conjunto, podemos até tentar criar partidos e organizações que nos representem propriamente mesmo nessa democracia que temos. Há exemplos disso no mundo. A tendência é que isso ocorra em todo lugar, então por que não começar agora?

E quanto ao medo de que algum aproveitador manobre esse momento para fins escusos, digo que não vai acontecer. As peças que já estavam no tabuleiro continuarão lá, jogando seu joguinho. Mas a peça-surpresa, a cultura desconhecida, que deu o cheque-mate, não tem nenhuma vocação para ser manobrada. Assim como o primeiro marqueteiro que conseguirá efetivamente criar uma peça viral de sucesso provavelmente ainda está no segundo grau, o primeiro político que entenderá suficientemente da dinâmica política da cibercultura para conseguir manobrá-la certamente está nas fraldas. É preciso crescer nesse meio para compreendê-lo. Por enquanto, estamos seguros.

Valeu a experiência, valeu o precedente, valeu o empoderamento de ter metido a cara no mundo e feito os poderosos, que se sentiam tão seguros, darem piruetas desgovernadas diante dos olhos do mundo. Valeu a piada de chegar no cenário político com um extintor no melhor estilo Didi Mocó. E pro futuro, tenho a certeza que não precisaremos mais de um absurdo tão grande quanto opressão policial estatal pra levantarmos nossas bundas e irmos twittar in loco, com cartazes, nas ruas. Já temos nosso case de sucesso, agora é estudá-lo e melhorá-lo

Não foi o gigante que acordou, foram as formigas que tomaram conta.


2.4.13

Química


Das matérias do currículo escolar brasileiro, Química nunca foi a minha favorita - entre as ciências, preferia a Física - mas um professor meu do segundo grau fez certa vez uma apresentação da matéria na aula inaugural que eu nunca esqueci. Especificamente, ele reclamou da moda publicitária de colocar a frase "não contém química" em produtos de beleza, que era bem comum nos anos 90. "Existe essa idéia idiota de que química é algo ruim," disse ele, "mas absolutamente todos os produtos de beleza contém química. Qualquer efeito que um produto de beleza tenha na sua pele, nos seus cabelos, é química. Não existe nenhuma transformação no mundo sem química."

Esse mês, o meu diagnóstico de TDAH completa 10 anos. O tratamento efetivo começou mais tarde, em maio de 2003, mas foi em abril que eu descobri que essa sigla iria me definir pelo resto dos meus dias, e que eu deveria no mínimo me familiarizar com ela e com seu significado. E o significado, resumidamente, era que minhas dificuldades crônicas de concentração, de manter atenção, de absorver informação, de resguardar e dosar minha energia, eram todas decorrentes de uma deficiência química do meu cérebro, e que existiam pílulas capazes de, se não reverter 100%, ao menos modificar o equilíbrio dessa química para que eu me comportasse diferente.

Na época, muita coisa mudou na minha vida, como esse texto demonstra. O problema foi quase que totalmente solucionado, mas eu sabia que os comprimidos que tomava não eram só uma reposição nutricional, que eles não continham "atenção concentrada" pronta para consumo. Eles modificavam totalmente o equilíbrio químico do meu organismo, e provavelmente essas mudanças refletiam em todo o meu comportamento, não apenas na capacidade de atenção. Mas na época, era difícil analisar. Era tudo muito novo, muito diferente, e o remédio não era o único fator causando reações químicas no meu cérebro. A própria euforia de estar conquistando um obstáculo que tanto havia me atrapalhado entrava na receita e contribuía com o resultado final. Tanto que, previsivelmente, essa fase passou, vieram outras fases, outros fatores, e eu nunca estive realmente estabilizado em um mesmo estado de funcionamento por mais do que uns 2 anos. O próprio consumo da Ritalina nunca foi processado da mesma forma pelo meu corpo por muito tempo, e recentemente tive que encarar o fato que, mesmo mantendo religiosamente o tratamento por 9 anos seguidos, eu estava mais TDAH do que nunca, e precisava trocar de remédios. Achei um novo remédio que me fez muito bem, mas trouxe efeitos colaterais (tiques e espasmos musculares) tão incômodos que agora estou procurando um segundo remédio que anule os efeitos colaterais desse primeiro. Como qualquer tratamento que visa o equilíbrio químico do cérebro humano, as doses e combinações precisam ir sendo testadas e o tempo de estabilização do efeito das drogas no organismo precisa ser respeitado. Além da consciência de que mesmo quando um equilíbrio satisfatório for alcançado, ele terá prazo de validade. O corpo se adapta, se modifica com os anos. Cuidar da química cerebral é uma responsabilidade para a vida toda.

Hoje fazendo um balanço desses dez anos, percebo que muitas outras coisas mudaram drasticamente em mim com o tratamento. Claro que nem tudo é culpa ou efeito do remédio, afinal dos 22 aos 32 há tempo e vivência suficiente para mudar a personalidade e o comportamento de qualquer pessoa, independente de condição psiquiátrica. Mas hoje eu sei que muitas coisas em mim mudaram enquanto eu não estava olhando - ou melhor, enquanto eu estava fascinando descobrindo um lado meu que o TDAH havia impedido de aflorar até então. Antes, eu era muito criativo, muito impulsivo, tinha muita fome de tudo, mas não tinha a capacidade de levar nada adiante, de dar a regularidade e o foco que meus impulsos necessitavam para se materializarem. Depois do diagnóstico, um mundo novo de possibilidades se abriu para mim, e eu passei a ser capaz de estudar, aprender, praticar, todas essas coisas que antes eram impossíveis -  mas os impulsos foram pouco a pouco desaparecendo. De certa forma, estar apto a realmente absorver o mundo me fez perder o interesse por atuar nele. Hoje em dia, meu maior problema é ter a capacidade e as ferramentas para transformar meus projetos em realidade, mas não ter nenhum projeto. Mesmo os que eu já que eu tinha antes do início do tratamento, quando me proponho a levar adiante agora, não me causam mais aquele ímpeto criativo, aquele turbilhão de idéias e projeções, aquela vontade quase irresistível de botar as engrenagens em movimento. Em dez anos, me tornei um ávido consumidor de informação, mas deixei de ser um criador.

Mas isso não quer dizer que minha criatividade tenha definhado ou que o mundo tenha me decepcionado ou coisa parecida. Na verdade, isso tudo tem a ver com uma única coisa: química. Meu professor do segundo grau me deu uma lição mais profunda do que eu era capaz de compreender na época, mas que hoje é uma verdade fundamental para mim: tudo é química, tudo contém química. Não só o TDAH ou a depressão ou os chamados "transtornos" psiquiátricos em geral, mas tudo. Tudo o que se passa dentro da nossa cabeça é uma reação química. Sem entrar no mérito do que é a alma ou qual seu papel no nosso funcionamento, mas nossas sinapses são reações eletroquímicas na sua forma mais pura. Nosso metabolismo é química. Nosso ganho e nosso gasto energético são química, e cada organismo é um circuito único, com seu próprio código genético que rege suas próprias reações químicas. Não apenas nossa racionalidade, mas nossas emoções, sensações, nossa percepção, tudo isso é decorrência direta do nosso equilíbrio químico.

Essa noção é ao mesmo tempo libertadora e opressiva. Saber que nossas emoções e idéias podem ser descritas com modelos matemáticos e influenciadas com catalisadores e inibidores nos dá um enorme poder sobre nossa própria vida ao mesmo tempo em que tira boa parte da nossa ilusão de livre arbítrio. Se todas as coisas que nos fizeram rir de felicidade ou chorar de tristeza na vida foram estímulos que desencadearam reações químicas em nosso corpo, nos levando ao riso ou ao choro, isso faz desses momentos mais ou menos reais? A famosa máxima que diz que a paixão é quimicamente equivalente ao consumo de grandes doses de chocolate faz dela um conceito falido? A poesia do amor é anulada quando concluímos que amar é sofrer uma série de reações químicas desencadeadas por estímulos transmitidos, voluntaria ou involuntariamente, pelo sujeito amado?

Minha avaliação, evidentemente, também é influenciada por reações químicas - em outros estados "de espírito" o raciocínio poderia ter sido completamente outro - mas ela parece cientificamente razoável. E vai ao encontro de noções universais contemporâneas, que dizem que existe uma engenharia para tudo, desde foguetes até comportamento de massa. As pessoas que abraçam essa noção, a de que nós somos uma combinação de elementos da tabela periódica, ficam livres de diversas armadilhas emocionais e de várias questões existenciais francamente inúteis. E menos susceptíveis ao controle externo por parte de líderes espirituais, publicitários, chantagistas emocionais, engenheiros sociais e demais grupos de indivíduos que aprenderam a lucrar com as reações químicas previsíveis do organismo.

Mais do que isso, aceitar que a química cerebral de cada um influencia imensamente no racional, no emocional e no físico de um indivíduo é aceitar que pessoas percebem, reagem, sentem e processam as coisas de forma diferente. É aceitar que nem todo mundo tem a mesma facilidade ou dificuldade para se concentrar, para aprender, para emagrecer, para produzir. E daí vem a incômoda verdade que cada um tem uma dificuldade maior ou menor de enfrentar as mesmas coisas, e que igualdade de oportunidades passa necessariamente por distribuir assimetricamente as condições, quando o instinto social espera que todas as pessoas ao nosso redor se ajustem aos nossos valores e recebam as exatas mesmas doses de tudo que nós recebemos. E essa verdade nos tira o tão precioso maniqueísmo a que nos agarramos para distribuirmos julgamentos de valor e morais. Não existem mais pessoas más, gordas, vagabundas, burras, dissimuladas; Existem pessoas cuja química cerebral desvia da curva normal. É uma extinção instantânea dos bodes expiatórios que são, por sua vez, um estímulo químico do qual quase todos nós dependemos. Um mundo sem culpados é um mundo sem sentido.

Mas tenho minhas dúvidas se isso é realmente tão ruim. Ou, ao menos, se é pior do que ver pessoas escravas de seus circuitos internos, dependentes de suas dopaminas e endorfinas que abominam a ideia de saciar a necessidade com drogas (lícitas ou ilícitas) mas que passam a vida buscando estímulos "naturais" que tenham o mesmo efeito dos sintéticos mas que dependem ou interferem com aspectos da vida alheia. Por exemplo, pessoas viciadas no rush da paixão (um estado químico que depende diretamente do estímulo transitório causado pela novidade) que destroem relacionamentos e vidas racionalizando uma dependência química. Ou pessoas que confundem desequilíbrio químico com vazio existencial e passam a acreditar piamente que não existe forma de se sentirem confortáveis no mundo ou na sociedade, com consequências trágicas. Uma vez que sabemos a origem do problema, mesmo ainda não havendo tecnologia para uma solução satisfatória (no meu caso, algo que consiga acertar o fio da balança entre meu estado racional e meu estado criativo), ao menos há menos desespero. São moinhos, e não gigantes.

Claro que essa postura é bastante cínica e não há nada de errado em ignorá-la momentaneamente para continuar vendo lirismo e espiritualidade nas coisas da vida. Mas lirismo, como tudo na vida, é melhor se utilizado com parcimônia.

25.9.12

The 2nd Law - Review


E eis que, finalmente, o tão aguardado novo álbum do Muse, The 2nd Law, ganhou o mundo. Apesar de ainda não ter sido oficialmente lançado, a banda o disponibilizou para reprodução online em diversos serviços de streaming gratuitos ao redor do mundo. Ele pode ser ouvido em alta qualidade aqui ou aqui. Vão lá, eu espero.

Ok. Então que, depois do texto que eu escrevi aqui outro dia sobre o single Madness, pelo menos alguém deve ter ficado curioso para saber o que eu achei do disco completo. Tá, provavelmente ninguém, mas eu vou escrever assim mesmo, no mínimo pra tentar tirar do meu sistema e conseguir falar de QUALQUER outro assunto nas redes sociais. Vamos lá.

Antes de mais nada, meu texto anterior era cheio de previsões e palpites (i.e. chutes presunçosos), então nada mais natural do que iniciar esse review analisando se minhas previsões estavam certas ou erradas. A resposta é clara como a neve: sim e não.

"Epa, como assim?" pergunta o leitor hipotético, "Ou o álbum seguiu o caminho que você previu, ou não seguiu, certo?" Mais ou menos. Acontece que, contrariando todas as expectativas, The 2nd Law é basicamente um álbum duplo contido num único disco. Até certo ponto, é um tipo de álbum, que confirma brilhantemente minhas expectativas. Aí rola uma parada (mais sobre isso a seguir), e ele vira outro álbum, totalmente diferente, totalmente na contramão do que meu texto dizia. Porque esse é o Muse, vc acha que tá jogando par ou ímpar e eles mandam um número irracional pra te descadeirar de vez.

Comecemos então a análise pela primeira parte de T2L, a parte "hit parade" do disco. As cinco primeiras faixas do álbum: Supremacy, Madness, Panic Station, Prelude e Survival (as duas últimas são na verdade uma música só), são exatamente aquilo tudo que minha análise de Madness esperava que o disco fosse. São músicas comerciais, super produzidas, formatadas direitinho para seus respectivos objetivos: Prelude/Survival para ser a música tema dos jogos olímpicos, Madness para ser o single quebra-gelo, Panic Station para ser o segundo single (já confirmado) e milimetricamente calculada para explodir nas pistas de dança norte-americanas, e Supremacy - e não tem nada de oficial no que eu vou dizer agora além da obviedade blatante da sonoridade da faixa o gato saiu do saco, vide adiante - para ser o tema do próximo filme do 007, Skyfall, que infelizmente acabou ficando com a Adele. Cada uma dessas músicas é o perfeito exemplo de tudo que eu venho falando sobre o Muse desde o meu review de The Resistance, sobre eles terem dominado o processo criativo e agora conseguirem fazer qualquer tipo de música muito bem.

Eu sei que tem muita gente que me viu colocar Supremacy ali no meio das músicas comerciais e já quer minha cabeça. É fato que Supremacy é uma obra prima, uma faixa monstruosa, emocional, explosiva, e a melhor faixa de abertura de CD da história do Muse (não dizendo que ela seja melhor que New Born ou Sunburn, apenas que, como faixa de abertura, é mais apropriada). Não há como negar. Mas também não há como negar que ela foi feita tão sob "encomenda" quanto Survival. Eu não fui nem de longe o único a gritar "eita, James Bond!" quando escutou Supremacy pela primeira vez, e depois de ouvir a versão de estúdio, que tem um acorde em guitarra havaiana no final (que ficou de fora da versão ao vivo), eu tive certeza. O Matt já tinha dito publicamente que queria fazer a música do próximo filme do agente secreto, e agora que a música ficou pública, parece que o próprio Dominic Howard já nem faz questão de esconder as pretensões da faixa. Essa música é claramente o motivo principal do Muse ter escolhido trabalhar com o David Campbell como arranjador do disco novo, e valeu cada centavo com certeza. Além disso, Supremacy traz de volta um elemento fundamental da sonoridade do Muse nos primeiros discos, que eles ainda não tinham utilizado a contento nessa nova era de composições calculadas: a explosão. Unnatural Selection, uma das minhas favoritas do Resistance e a mais pesada do CD, era um desfile de texturas de rock n' roll que o Muse nunca tinha usado antes, uma forma deles dizerem "ei, a gente consegue fazer som porrada de qualquer tipo, escolha o seu," mas justamente por ser uma paleta aberta, eles omitiram as cores "padrão" da banda. Aliás, isso pode ser dito de todo o Resistance e, em boa parte, do BH&R também - a banda estava focada em ampliar seu portifólio musical, o que gerou muita coisa boa e interessante, mas naturalmente distante do que eles já sabiam fazer com maestria. The 2nd Law encerra esse ciclo, e tanto Supremacy quanto a controversa Survival são, em seu cerne, o Muse explosivo "das antigas" coberto de caramelo e confeitos e chantilly e polido e platinado e mais quantos acabamentos se imaginar, texturizados para soar exatamente como o projeto pedia.

Se ainda tem alguém querendo me degolar por ter dito que Supremacy foi construída ao invés de esculpida (ou, pior, que ela e Survival são músicas gêmeas), talvez seja hora de rever seus conceitos e aceitar que o Muse consegue fazer canções épicas, arrebatadoras e tão monstruosas quanto as clássicas sem precisar vomitar emoções num papel. E funcionam tão bem quanto. Claro, o zigoto que gerou Supremacy é, antes de tudo, um riff que eles usavam durante Citizen Erased nas apresentações ao vivo, então talvez seja uma questão genética, mas eu prefiro acreditar que eles são bons músicos que sabem o que estão fazendo, ao contrário de gente que acha que o Muse só foi bom naquela época.

Sobre Madness, já falei bastante e mantenho minha opinião.

Panic Station, por outro lado, é uma delícia. Nunca houve qualquer dúvida que ela seria o segundo single, é tudo parte do plano. Madness é a amaciada no bife, uma música simples e de fácil digestão feita pra chamar a atenção de quem não estava olhando (e conseguiu), e Panic Station é um  Whooper triplo com bacon extra e queijo e picles e cebola caramelada em forma de música, que é pra viciar o consumidor. Musicalmente, ela não tem nada a ver com nada que o Muse já fez. A base dela é o funk americano (mais uma vez, qual será o mercado que eles estão mirando? mistérios...) mas a mixagem, a produção, são irresistivelmente deliciosos. Quem não dança com Panic Station, bom sujeito não é. Perto dela, as outras faixas dançantes do Muse parecem brincadeira de primário. Se o topo das paradas norte-americanas não vierem dessa vez, olha, é muito estigma e má-vontade, porque PS é muito próximo do single pop perfeito.

E aí vem Survival, que, todos estão carecas de saber, foi o tema das Olimpíadas de Londres. Muita gente, para minha estranheza, despreza Survival. Já a li ser chamada desde "piada" até "corporate bullshit." O mais estranho é que, como já falei, ela e Supremacy são faixas irmãs. Ambas feitas com um propósito, buscando uma sonoridade e um clima específico. Ambas com letras bem vazias (aliás, salvo uma única exceção, as letras de The 2nd Law são todas bem descartáveis). Ambas são corporativistas. Nenhuma das duas é uma piada (a única música de piada do Muse até hoje permanece sendo United States of Eurasia, e foi uma piada que perdeu a graça bem rápido). Se a letra não faz nada pela música além de reforçar o que a melodia deveria te fazer sentir, como aquele nosso amigo lerdo que fica falando em voz alta tudo que está subentendido, é porque um tema olímpico realmente não tem lá grandes motivos pra ter letra. Mas ignorando essa parte, Survival é perfeita para o que se propõe, e é explosiva e emocionante como nada do Muse tinha sido desde Knights of Cydonia. Enfim, eu gosto e ouço sempre.

E até esse momento, The 2nd Law está super encaminhado para ser um cartão de visitas da banda, só faltando o telefone de contato e o "fazemos orçamento sem compromisso" impresso na capinha, e está tudo prontinho para que eles desembarquem em Hollywood como a Next Big Thing e tal, e eis que, assim que rolam os surdos do final de Survival, algo acontece e muda tudo.

Soam as batidas do coração de uma criança pelos alto-falantes da sala de ultrassom.

E The 2nd Law vira outro álbum. Um álbum tão cheio de emoções, conflitos, e - ironicamente - um álbum com um conceito muito bem definido. Um álbum que reflete o coração conflituoso do Bellamy como Showbiz e Origin of Symmetry refletiam. Um álbum sobre paternidade, sobre família. Um álbum que pega tudo que eu achei que sabia sobre a banda, amassa e joga no incinerador. Para nossa alegria.

Follow Me, a música que abre esse segundo e não-relacionado disco também entitulado The 2nd Law , é uma música que eu até agora, várias reproduções depois, ainda não consegui ouvir até o final sem ficar com um nó na garganta e os olhos marejados. Talvez porque eu também tenha virado pai nesses últimos 3 anos, também tenha escutado o coração do meu filho pelos alto-falantes e sentido o peso do mundo se retorcer em cima dos meus ombros em uma fração de segundo que muda tudo (e voltamos a essa simetria bizarra que me faz me refletir no Matt desde 2001, sempre em fases de vida parecidas a cada novo disco). Ela começa com o coração do neném, e logo entra a voz do pai. Arrastada. Derrapando. Escolhendo as palavras. E as palavras que ele escolhe são as mais simples e óbvias do mundo. E é o poema de amor mais bonito que ele já escreveu.

A música inteira é como a recuperação de um choque de realidade, da realização repentina que aquele pequeno coração batendo no sistema de áudio vai enfrentar tudo o que o nosso próprio coração já enfrentou, todas as dores, todos os sustos, os apertos, e a necessidade de dizer para aquela criança que nós estamos ali. Não temos a resposta para tudo, mas estamos ali. Na dúvida, nos siga, que a gente dá um jeito. É a síntese absoluta da sensação da paternidade, é um amor todo doido, todo incondicional que nasce na gente depois de macaco velho, de já nos acharmos experts em amor. Follow Me tem a letra mais simples de todo o disco - mais até que de Survival e de Madness - e no entanto é a mais profunda. Porque todas essas coisas são só o que se consegue dizer diante dessa experiência.

Daí em diante, seguem-se três faixas que mostram que Bellamy está APAVORADO diante da perspectiva de ter botado um filho no mundo. Deve ser difícil mesmo pra um teórico de conspirações assumido (o Chris revelou que ele chegou a estocar comida e se preparar para a chegada dos aliens na época em que compôs Resistance, ou seja, ele vai fundo na parada). Esse trecho é o que faz de The 2nd Law uma obra complexa, que acompanha a aceitação do pequeno Bingham pelo pai.

Animals é minha favorita do disco. Tematicamente, ela fala sobre corporações que se comportam como animais, passando por cima de tudo e de todos para enriquecer e se tornar o topo da cadeia alimentar. Aquele velho bla bla bla. Mas musicalmente, ela é um retorno súbito e inesperado ao Muse da era Absolution, despida de toda a superprodução do resto do álbum, apenas os três tocando seus instrumentos de sempre (guitarra+teclado, bateria e baixo), com muito poucos efeitos. É a música mais melancólica que eles se permitiram fazer em anos, e é aquele sinal que eu estava esperando que, por baixo de toda a produção e toda a megalomania, eles continuam tão bons quanto sempre foram. Junto com Supremacy, Animals traz de volta, em circunstâncias bem diferentes, o segundo elemento que andava falatando nos discos atuais do Muse, aquela já discutida alma. E também é um ato de coragem do Bellamy, que já disse semi-brincando que desistiu das letras pessoais e passou a fazer álbuns-conceito porque se sentia muito exposto. O "segundo" T2L é - musicalmente - quase um raio-x na alma do cara. Uma pena que ele continue se escondendo nas letras. Mas é o que eu sempre digo, paternidade amadurece as pessoas, certeza que ainda veremos muita coisa sincera vinda dele.

Se Animals é a melancolia, Explorers é a aceitação. A dicotomia entre a melodia de canção-de-ninar e a letra que diz que ter nascido foi "um erro aprisionando minha alma" e pedindo que "liberte-me deste mundo" poderia ter deixado a música, que fala sobre a raça humana esgotando os recursos e a beleza naturais do planeta, com um tom sombrio. Mas a sensação que ela passa é justamente a contrária. Quando a letra passa da primeira pessoa do singular para o plural, é como se Bellamy dissesse ao filho "eu entendo, eu também não pedi pra nascer, esse mundo é cheio de merdas, mas nós estamos juntos." e termina com um beijo de boa noite e com uma cumplicidade reconfortante entre pai e filho.

Já em Big Freeze, Matt já parece ansioso pela chegada do neném. A letra pede, genericamente, perdão pelos erros passados, e diz que estamos próximos de um "grande congelamento" mas ainda há chance de consertar as coisas. "Não deixe o sol em seu coração esmaecer," diz a letra. A batida é animada, a harmonia é contagiante, e traz a promessa de redenção e de coisas novas e boas. Exatamente o que um filho traz, um recomeço. Posso estar muito fora de linha aqui, mas nada no mundo vai me convencer que essas quatro músicas - Follow Me, Animals, Explorers e Big Freeze - não são uma pequena jornada pelo coração do Matt desde o momento em que descobriu que seria pai até pegar o filho no colo pela primeira vez. Eu sei que eu mesmo senti todas essas coisas - do medo de não ser um bom pai à emoção de poder criar meus filhos para serem melhores do que eu - e na falta de prova em contrário, é assim que o disco soará para mim eternamente.

Nesse ponto, temos as duas faixas compostas e cantadas pelo Chris, Save Me e Liquid State. As músicas são, primariamente, sobre a recente batalha dele contra o alcoolismo, e como ele quase chegou ao fundo do poço. Mas as músicas não foram escritas para ele, ou para a garrafa. Foram escritas para a família, que ele diz ter sido fundamental no processo de recuperação. E isso fica absolutamente evidente em Save Me, que é uma homenagem e um agradecimento à esposa e aos filhos que tiveram coragem de enfrentar todos os subterfúgios dele e trazê-lo de volta. Liquid State tem um tom mais raivoso, de desgosto com os efeitos da bebida e talvez consigo mesmo, por ter se deixado quase destruir, mas também remete ao socorro que ele precisou para sair do buraco. Duas músicas diferentes mas que se completam, e que contam como um homem foi salvo pelo amor da família. Nada mais natural que elas estivessem no "segundo" álbum.

Sonoramente, é claro que as faixas do Chris são bem diferentes do que se costuma ouvir nas faixas do Muse, mesmo as mais produzidas, mas acho muito exagerado dizer que elas destoam do resto. Panic Station destoa bem mais da curva normal do Muse do que Liquid State. Talvez seja o choque causado pelos vocais do Chris, que são claramente mais graves e arranhados do que a voz soprada e suave do Matt a que estamos acostumados, mas tirando isso, ambas as faixas são musicalmente bem consistentes com a banda na qual o cara toca há quase 20 anos, como não poderia ser diferente.

Arrematando o álbum, temos duas faixas instrumentais, Unsustainable e Isolated System, que, a exemplo da sinfonia Exogenesis, também são uma única obra, homônima do álbum, dividida em duas partes. Consolidando minha teoria dos dois álbuns, cada uma delas serve como um resumo, por assim dizer, das duas partes de The 2nd Law. Unsustainable tem uma grandiosidade calculada, orquestrada, intercalada com trechos eletrônicos inspirados pelo dubstep e com uma narração que alerta para a impossibilidade do modelo econômico atual se sustentar usando a segunda lei da termodinâmica (entropia) como argumento. Unsustainable é uma música com uma missão, e independente do quão bem ela a cumpra, ela reflete a alma da primeira parte do disco, um disco com uma missão - colocar o Muse entre os grandes nomes do rock mundial, vender bilhões, virar o novo U2 (aliás, não por acaso, quase todas as faixas de ambas as partes de T2L soam muito como o U2, um reflexo da enorme influência que a banda sofreu dos irlandeses durante o ano que passaram juntos em turnê).

Isolated System é uma viagem progressiva maravilhosa que se baseia em um riff de piano e uma batida ritmada eletrônica, aonde instrumentos e samples vocais chegam e saem, numa montanha russa emocional que é basicamente o tema da segunda parte de T2L. A mesma aula de física de Unsustainable agora ecoa vagamente ao redor da batida, como se nada mais tivesse tanta importância, nada fosse tão urgente. Vozes de coral, cordas, samples, todos eles passam pela espinha dorsal da música, às vezes, próximos, às vezes longe, mas nunca por muito tempo. Até que, ao final da música, a batida eletrônica lentamente vai se transformando novamente no que ela sempre foi: a mesma batida do coração do pequeno Bingham Bellamy, que lá na metade do disco sequestrou a concentração do pai no meio de seu discurso de vamos-salvar-o-planeta e o jogou nessa realidade maluca que é a paternidade e a formação de uma família. No final das contas, entendemos que Isolated System é, basicamente, a representação de como o bebê, de dentro do sistema isolado do útero materno, percebe seu pai.

O mais curioso é que ambas as partes de The 2nd Law, mesmo consideradas independentemente, soam melhores do que The Resistance. Sem desmerecer o álbum de 2009, a banda evoluiu quase que em todos os aspectos de lá pra cá. As músicas de trabalho do Second Law são melhores que as músicas de trabalho do Resistance. As músicas de coração, por mais que eu goste da faixa-título do anterior, também são melhores. E T2L é pessoal num nível que nem o Resistance, nem o Black Holes & Revelations se permitiram ser, o que faz maravilhas pela profundidade artística da obra.

Espero que daqui pra frente, o Muse deixe pelo menos um pedacinho de seus futuros álbuns reservados para faixas sem tanta maquiagem, nem que seja pra gente renovar o respeito pelos arranha-céus musicais que eles se especializaram em erguer do zero.

25.8.12

O novo single do Muse (e o que ele significa para a banda)


Quem me conhece sabe que o Muse é minha banda favorita desde meados de 2002. Por muito tempo fui dono da comunidade Muse Brasil no Orkut, segui a banda nos 3 primeiros shows que eles fizeram no Brasil, em 2008, e escrevi um longo texto no forum do MuseBrasil.com sobre eles na época do último álbum, The Resistance, onde falava basicamente sobre a trajetória da banda até então e sobre a minha relação com a música deles. Resumindo, Muse é um dos poucos assuntos sobre o qual eu me permito ainda escrever posts inúteis como esse aqui promete ser. Sigam por sua conta e risco =P

Pois bem. Em algumas semanas, o Muse lançará seu sexto álbum de estúdio, The 2nd Law, e nos últimos 2 meses a ansiedade veio crescendo em progressão geométrica, inclusive com a revelação gradual de três das 13 faixas do novo disco. No entanto, não escapou a ninguém o fato de que cada uma das 3 faixas já reveladas são bem diferentes das outras, e a mais recente - Madness, o primeiro single - gerou uma repercussão entre os fãs como eu não via desde que Supermassive Black Hole apareceu e fez alguns xiitas cortarem os pulsos (ok, talvez nem tanto, mas o dono da maior comunidade de Orkut da banda na época deletou a mesma num surto de raiva e muitos outros na MB abandonaram revoltados, só pra citar alguns chiliques). Aquela velha história de "OMG Muse acabou" e "Muse se vendeu" e etc. Dessa vez, curiosamente, eu não acredito que estejam de todo erradas. Mas acho que a surpresa é desmedida. Explico:

Madness não é a primeira balada soft do Muse, nem de longe. Nem tampouco a primeira faixa carregada na produção eletrônica - fora a guitarra durante o solo e a bateria, não há um único instrumento na faixa que não esteja pós-processado à exaustão - tendo sido precedida por Map of the Problematique e Undisclosed Desires, além da própria SMBH que só é rock ao vivo, em estúdio é um dance track. A diferença é que Madness foi escolhida como o single do novo álbum, e tem sido universalmente elogiada como a melhor música deles até hoje, inclusive pelo próprio Matt, para horror e confusão dos fãs, que se perguntam o que será que está acontecendo.

Bem, eu tenho algumas teorias (ou esse post não existiria).

Primeiro, devemos lembrar que Supermassive também foi o primeiro single de Black Holes & Revelations. Quem é fã de longa data lembra bem dessa época e do motivo dessa decisão. O Muse já tinha 3 álbuns de estúdio e mais dois DVDs ao vivo, enchia arenas na Europa, e quando entraram no estúdio vinham do maior show de suas vidas, Glastonbury 2004, um show que até hoje eles descrevem como um marco na trajetória da banda, o show em que eles perceberam que sua música podia mover as massas e alçá-los ao patamar de um U2. Só tinha um pequeno problema.

Eles não conseguiam igualar esse sucesso nos EUA por mais que tentassem.

Nessa época começou uma certa obssessão musical do Muse pelo mercado fonográfico norte-americano. O topo das paradas estadunidenses viraram, pra exemplificar de forma clara, a Libertadores corinthiana da banda. Eles tentaram de tudo, formataram sua sonoridade pra se encaixar no gosto ianque, priorizaram os singles "acessíveis" (o segundo single do disco, Starlight, é uma música dessas feitas pro público bater palminhas no show e pras patricinhas desmioladas gritarem "AI MINHA MÚSICAAAAAA" e cantarem junto a única que conhecem) e inclusive fizeram algo que eles mesmo admitem que foi como vender a alma para o demônio - viraram a banda de destaque na trilha sonora de Crepúsculo. E mesmo negociando as próprias pregas morais desse jeito, o Muse continuou sendo uma banda de nicho nos EUA (e, pra piorar, o lance com Twilight os estigmatizou de tal forma que foi um tiro no pé, tanto que se recusaram a continuar a farsa e abandonaram a trilha dos próximos filmes).

Então por que será que eles insistem e colocam Madness como abre-alas do novo álbum? Bem, ao que tudo indica, porque quem persiste eventualmente vence.

Nos dias que se seguiram ao lançamento de Madness, a positividade recebida pelos próprios figurões da indústria é um alento para o (ex-)power trio. Se as opiniões inflamadas de Chris Martin, do Coldplay - a maior autoridade em soft-rock-mela-cueca-que-vende-discos-a-rodo em atividade -, que chamou Madness de "a melhor música do Muse até a data," ou de quem quer que estivesse usando o twitter oficial do Keane quando postou que Madness "recuperou sua fé na música britânica," entre outros, servir de parâmetro, eu diria que o Muse também vai ganhar sua Libertadores em 2012 (ê, aninho...). A transformação daquela banda introspectiva que transformava angústia em linhas melódicas simultaneamente complexas e cruas em um sucessor do U2 como reis do rock-coxinha de lotar arenas está completa.

Agora, isso é novidade? Não, né? Black Holes & Revelations saiu em 2006. Isso foi 6 anos atrás. 6 anos e 2 álbuns inteiros, mais um b-side e 3 faixas novas agora. Tempo suficiente pra qualquer pessoa de bom senso notar que o Muse não é mais a banda do Origin of Symmetry e do Absolution. Se chocar com o rumo que The 2nd Law está tomando é mergulhar de cabeça no maior poço de amnésia seletiva do mundo. Nada do que eu disse acima é novidade pra qualquer pessoa que tenha lido uma única entrevista deles nesse período. O Muse pós-Glastonbury sempre almejou ser uma banda acessível e universal. Eles pararam de se refletir nas músicas e começaram a, conscientemente, passar mensagens. A mudança nas letras entre as duas fases da banda é a maior prova disso. Até o Absolution, eram fios-de-consciência truncados, obscuros, e muitas vezes resultado de viagens de cogumelo (que a banda usava pesadamente quando compôs o Origin). Dali pra frente, quando o Bellamy começou a decidir previamente sobre o que gostaria de falar, acompanhar a evolução das letras do Muse passou a ser como acompanhar a evolução do seu filho nas aulas de redação. A gente fica orgulhoso com o progresso, mas não vamos nos enganar e dizer que são poesias =P

Musicalmente, também, já passou da hora dos fãs pararem de esperar um álbum no estilo do que foram os 3 primeiros. Essa época acabou. Aquelas músicas que pareciam tão guturais e que ao mesmo tempo traziam riffs tão desproporcionalmente rebuscados? Não vendem. Me lembro até hoje de ouvir Sunburn pela primeira vez e pensar "caralho, esse moleque toca piano a sério" ou ouvir Plug In Baby e pensar "faz tempo que não ouço uma música contemporânea com um riff de guitarra tão empolgante e que não descamba pra punheta técnica estilo Yngwie Malmsteen ou John Petrucci," ou mesmo da primeira vez que os vi tocando ao vivo e pensei "CARALHO peraí ele toca piano e guitarra assim NO PALCO? Não foram 23 takes de estúdio??" e é uma época que eu me lembro com muito carinho, mas não tenho esperança nenhuma de ver a banda tocando nada desse naipe outra vez. Faz tempo. Hoje em dia o Muse destilou esse som e o engarrafou pra usar como apenas um dos vários ingredientes de suas músicas. E muito se engana quem diz que Muse agora soa genérico - qualquer pessoa que detesta a banda te dirá de cara que a música deles é sempre reconhecível, sempre "a mesma coisa." A textura musical que eles criaram ainda está lá, só que agora ela é dosada, calculada, formulaica. Nunca sobrando. Nunca tão espremida dentro do tempo de execução que parece que vai vazar, explodir, nos engolir (New Born e Stockholm Syndrome, estou olhando para vocês).

Isso faz com que o Muse atual seja ruim? Não. Pelo contrário. As 3 músicas que já conhecemos do 2nd Law provam que Bellamy, Howard e Wolstenholme se tornaram um canivete suíço musical, capazes ao mesmo tempo de escrever um tema olímpico, uma balada que transcende gêneros, e uma peça que mistura a orquestração dos clássicos com a textura do eletrônico de vanguarda. Três músicas que podiam ter sido escritas por três bandas diferentes, e que ao mesmo tempo gritam "Muse" por todos os poros. Matthew Bellamy continua sendo o cara que botou um um estudo de virtuose pianística no meio de um rock cheio de distorções e gritos e com uma letra emotiva, chamou de Sunburn e explodiu meu cérebro, mas agora quando ele escreve riffs rodopiantes, ele transforma em peças orquestrais inteiras; quando ele sente necessidade de falar da vida amorosa, ele escreve, lê, lê outra vez, calcula a métrica, escreve uma melodia exclusiva praquele sentimento, e lança uma balada perfeita. Quando ele quer socar o estômago do ouvinte com um vagalhão sonoro, ele mistura a progressão harmônica de Take a Bow ao piano estacado de USoE e bota um coral no meio da história. Tudo calculado. E continua excelente. Bem, exceto talvez nas letras, mas nosso garoto tá melhorando, vai! =P

Mas também não dá pra dizer que o Muse é o mesmo de quando eu ouvi pela primeira vez. Eu passei dias ouvindo Survival e a própria Madness no repeat quando foram lançadas, da mesma forma que ouvi Muscle Museum por duas SEMANAS a fio naquele distante 2002, e tem sido assim com todos os singles de todos os álbuns deles, basicamente. A característica "chiclete" é perene. Mas as músicas do Showbiz, do OoS e do Absolution eram tão cheias de nuances que mesmo agora, anos depois, eu ainda escuto coisas novas nelas. Tenho certeza que isso não acontecerá com Madness, assim como já não aconteceu com Undisclosed Desires que, após o fim do período de repeat intenso, virou uma faixa que eu já nem presto atenção direito quando ouço. Não porque ela seja ruim, mas porque essas faixas pop se esgotam rápido (e é pra ser assim, afinal o pop vive de rotatividade). E se tem uma coisa que me deixa triste quando penso no Muse de ontem e de hoje é lembrar de um cartaz na platéia do show do Le Zenith, imortalizado no primeiro DVD deles, Hullabaloo, que dizia "Thanks for bringing back the soul to rock n' roll." Esse cartaz, que tanto me representou, está obsoleto. A alma que o Muse trouxe de volta já não está mais lá. Foi engarrafada e posta a serviço da vontade. E teria que ser, por questões de sobrevivência. Não acredito que a banda tivesse durado muito mais se eles não tivessem saído da adolescência musical e começado a tratar a música como seu ganha-pão. Nada de inglório nisso, e, verdade seja dita, temos 3 discos e um cacetão de B-Sides daquela época pra onde corrermos quando quisermos aqueles arrepios. Mas música desse tipo, agora, só quando surgir o próximo Muse.

Talvez, eventualmente, a banda resolva fazer como o Radiohead que depois de muita estrada resolveu abrir um parêntese e escrever o OK Computer 2 (a que chamou de Hail To The Thief), fez sucesso, e seguiu de onde tinha parado. Talvez no aniversário de 15 anos do Absolution (já que o de 10 tá muito perto) eles façam um Absolution 2. Mas não esperem o raio caindo no mesmo lugar pela segunda vez. Se esse disco acontecer, será obra de uma autoreferência (ou auto-paródia) consciente, e o som pós-processado pode se disfarçar de seminal (ou talvez eles façam como o Foo Fighters que gravou um disco "de garagem" e teve um estrondoso sucesso com ele, ganhando Grammys de baldada) mas será ainda resultado de uma reunião pra decidir e compôr as músicas que eles querem, não vai ter nenhum poema saindo de fundo de gaveta, nenhum jam session de ensaio se tornando riff e brotando em música. Claro que esses momentos provavelmente ainda existem, mas eles virarão uma ou duas músicas, não mais uma filosofia como já foram.

Mas enfim, é cedo demais pra falar, o disco ainda não saiu, sabemos que ele tem coisas novas (duas faixas inclusive escritas e cantadas pelo baixista Chris Wolstenholme num momento bem intenso da vida dele, a luta contra o alcoolismo, que todos nós esperamos que soem como o Muse de antigamente, as chances são boas) e ainda tem 10 faixas pipocando por aí que podem desdizer tudo que eu escrevi aqui em cima. Ou podem confirmar. Não estou apostando grana em nenhuma das opções, mas estou, sim, bem otimista com a possibilidade de pelo menos alguma delas se tornar uma das minhas favoritas de todos os tempos, como a faixa-título de Resistance se tornou mesmo 3 anos depois de lançado o último álbum. Estou fazendo figa! Hope that means something =P

23.3.12

Adeus inocência


A despeito dos impulsos que eu volta e meia tenho, é raro usar esse blog pra comentar alguma notícia (ok, é raro usar esse blog, ponto). Mas ontem uma série de acontecimentos gerou uma situação bastante curiosa no Twitter, dessas que eu tenho vontade de comentar mas jamais conseguiria fazê-lo em parcelas de 140 caracteres - ou seja, um assunto sobre o qual tenho uma opinião elaborada. Em 140 caracteres só cabem palavras de ordem e julgamentos absolutos.

Um tempo atrás, um burburinho no Twitter chamou minha atenção a uma das páginas mais ofensivas que eu já tive o desprazer de conhecer, e olha que eu tô nessa tranqueira de internet desde 1996: um blog entitulado "O Perdedor Mais Foda do Mundo," assinado por um (obviamente fictício) Silvio Koerich, onde o autor postava textos de conteúdo chocante, destilando ódio e ofensas aos mais variados grupos sociais e étnicos - negros, nordestinos, judeus, mulheres, quase um minucioso e abrangente catálogo de preconceitos. E não eram apenas ofensas, o negócio descambava pra ameaças de morte, incitação escancarada a violência, pedofilia, estupro e assassinato. Fotos explícitas de crimes bárbaros, posts ameaçadores endereçados a personalidades reais, enfim. O pacote completo.

A princípio, encarei como obra de algum desses incontáveis moleques perturbados que usam o anonimato da internet pra dar vazão a todas as suas fantasias de poder e que satisfazem uma necessidade imperativa de atenção abraçando causas socialmente inaceitáveis ou criminosas apenas pra causar celeuma. Já vi muito disso, nesses 16 anos de interwebz, e a verdade é que, com o tempo, o modus operandi desses "trolls" foi gradualmente se refinando. O que antigamente era só alguém escondido atrás de um apelido xingando muito no IRC ou em listas de discussão pra receber imediatamente a gratificação da revolta alheia, com o tempo foi se fantasiando de causa "legítima." Os iconoclastas já não se contentavam em revoltar pequenos grupos ou pessoas específicas em troca de um flame war pra aquecer as noites solitárias. Eles foram aprimorando o discurso. A era pós-11 de Setembro os ensinou que qualquer coisa pode ser legitimada se tratada como uma opinião política (que por sua vez justifica qualquer merda, contanto que se acredite fanaticamente nela). Idiotices milenares como criar páginas e foruns pra zombar e ofender vítimas de desastres que comovem a opinião pública passaram a ser uma forma de "protesto" contra o "establishment." Boçais se reuniam em grupos que tinham "bandeiras" - meras desculpas para a masturbação egóica, agora coletiva, que eles promoviam sob forma de "ataques" ou publicação de opiniões absurdas. Toda essa idiotice, pra mim, sempre foi apenas uma pantomima pra justificar - para outros e para si mesmos - o que essas besteiras sempre foram: carência de atenção.

Talvez por isso mesmo, meu cérebro estivesse condicionado a processar postagens abjetas como a do tal blog do "Sílvio Koerich" (que, agora se sabe, é o nome de um outro blogueiro que os donos do blog começaram a usar sem autorização como represália ao cara) como meras hipérboles da fantasia de um molecote espinhento que não consegue se impôr nem se enquadrar na sociedade e usa a internet pra se passar por alguém poderoso, seguro e dominante. Como de praxe. Denunciei, é óbvio, porque mesmo absolutamente fictícios, o conteúdo dos posts já era suficientemente criminoso para tal. Mas nunca na vida imaginaria que os donos daquela pocilga já fossem adultos formados, com emprego fixo, e um deles com meio milhão de reais na conta vindos não se sabe de onde. Tive um choque de realidade ontem ao ler a notícia. Não são moleques com delírios de grandeza. São adultos, emancipados, economicamente ativos, e psicologicamente perturbados. Isso é muito grave, porque molecotes espinhentos normalmente não têm outra forma de dar vazão a suas psicoses que não na interação textual pela internet. Mas adultos com dinheiro, esses podem fazer estrago. E, pelo que a Polícia Federal indicou, eles tinham planos reais e materiais de fazer estrago. A porra ficou séria.

Isso me fez repensar muitos dos meus comportamentos padrão, em especial o de achar que a internet é feita de adolescentes e pré-adolescentes. Curioso que essa noção não tem nenhuma razão de ser além do fato de que EU era adolescente quando entrei aqui, de que na minha experiência pessoal todos os idiotas que causavam revolta na internet também ERAM adolescentes. Foi nessa época que meu "streetwise" online se formou e foi assim que eu encarei toda e qualquer briga online desde então, como rusguinha de adolescentes que são super machões online mas, na hora do vamos-ver, olham pro outro lado com cara de cu. Claro que desde aquela época existem sites de terroristas, de nazistas, grupos organizados de praticantes de crime de ódio, etc. Mas, primeiro, aqui no Brasil isso era meio que lenda até agora. Rola muito submundo de pedofilia na internet brasileira, mas submundo de racismo pra mim era coisa de americano e europeu. Não mais. Adolescentes trollzinhos não angariam 500 mil reais nem mapas esquemáticos de casa de festa de faculdade onde se pretende encenar um massacre armado. Isso não é pilha pra conseguir atenção. Isso é doença de verdade, e os doentes estão aqui entre nós. Pra mim, ao menos, acabou a farra dos flame wars e das trollagens sem medo de ser feliz. Acabou o cinismo de achar que tudo é trollbait. Vou tomar bem mais cuidado com isso a partir de agora.

E eu sei que não sou o único a rever meus conceitos depois dessa história. Ontem, depois da prisão de dois dos envolvidos no tal site, uma treta sem precedentes eclodiu na minha timeline do Twitter, em que um grupinho acusava outro de ter dado moral ao Silvio Koerich ao retwittar um texto (bem tosco, diga-se) do cara sacaneando o feminismo. A despeito de achar que nenhum dos dois grupos envolvidos lidou com a situação de forma adulta (e não faço críticas porque, como eu, todos deviam estar ainda atordoados com a notícia), acho que o episódio ilustrou muito bem a necessidade de um amadurecimento de conceitos como o que eu me comprometi a adotar ali em cima. Boa parte dessa galera, assim como eu, foi criada nas tretas online de molecagem, e provavelmente também não leva(va) a ferro e fogo certos tipos de provocações. Todos nós já estivemos lá - jogar uma bomba da discórdia no meio da discussão para inflamar os ânimos. É uma técnica clássica para desestabilizar o interlocutor. Nesse espírito, muitos dos sujeitos que não se bicam com o movimento ultrafeminista (que, como todos os movimentos, tem uma causa - justa - no seu cerne, mas que adapta a contundência de sua argumentação de acordo com os interlocutores. Só que quando se fala grosso com quem precisa de grosseria num meio generalista como a internet, pessoas razoáveis também lêem e se sentem trespassadas pelo tom e consequentemente antipatizam com as causas justas por aversão aos argumentos) e costumam usar um machismo irônico nas discussões unicamente para irritar as "adversárias," foram pegos ontem de calças curtas com suas arrobas associadas ao Silvio Koerich (o original, não o fake criminoso) por terem retuitado um desses textos trollbait do cara. Na boa e velha internet-moleque de anteontem, eu teria dado risada do texto. Hoje, o buraco é mais embaixo. E claro que muita gente perdeu a mão ao apontar o dedo pra essa situação, e muita gente perdeu a cabeça ao se defender. Eu vi até gente partindo pra ameaça de processo (e aqui reservo-me ao direito, mesmo tendo prometido ali em cima levar a internet mais a sério, de considerar isso a técnica mais velha, mentirosa e boçal de intimidação do planeta. Pelo menos isso não vão me tirar.) e pouca gente dos dois lados da questão - basicamente o Pablo Villaça e o Israel "Izzy" Nobre - racionalizando a parada e transformando a guerra de cocô em uma reflexão válida. Espero que, conforme os ânimos vão se acalmando, outras pessoas façam o mesmo. Eu estou fazendo.

A internet ficou um pouco menos divertida com essa história, mas também ficou um pouco mais segura - felizmente, ANTES de ter consequências desastrosas.